O presente documento da Sagrada Congregação para o Culto Divino
apresenta um conjunto de elementos teóricos de carácter teológico, litúrgico e
jurídico, mas não de carácter musical, que possam fundamentar algumas orientações
pastorais no que concerne à utilização de espaços sagrados para realizações de
âmbito musical, ou mais concretamente, sobre a problemática dos "concertos nas
igrejas" que dá título ao documento. O facto de o documento não vir definido é,
de si, revelador de uma certa indefinição no problema e nos autores do documento: não
é um Decreto, não é uma Instrução, e quando apresenta algumas orientações não lhes
chama regras, normas, nem sequer orientações, mas apenas "disposições
práticas", apenas com o intuito de "ajudar os Bispos", deixando a estes a
carga da responsabilidade de agir e se defender nas situações mais complicadas. O facto
de ser publicado em francês leva a entender que tem a situação particular da França
como pano de fundo. Não me consta que tenha havido entretanto mais qualquer tipo de
orientação ou tomada de posição, nem mesmo que alguém tenha procurado estudar e
fornecer elementos que permitam estabelecer um conjunto de critérios de avaliação do
repertório a utilizar, que era o que se precisava. Ao restringir o repertório à música
sacra ou à música religiosa que muitas vezes confunde, evita a verdadeira questão que
se nos coloca na prática porque, assim sendo, o estilo de música a admitir já está
claramente definido e o resto fica de fora. I
- A MÚSICA NAS IGREJAS,
FORA DAS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS
1. O interesse pela música é uma das manifestações da cultura
contemporânea. A facilidade de podermos escutar em casa as obras clássicas, graças à
rádio, aos discos, às cassetes, à televisão, não diminuiu de modo nenhum o prazer da
assistência a um concerto ao vivo e acabou mesmo por aumentá-la. Trata-se aqui de um
fenómeno positivo, porque a música e o canto contribuem para a elevação do espírito.
O aumento do número de concertos levou, recentemente, em muitos
países, a uma utilização frequente das igrejas para a sua realização. As razões
invocadas para tal são variadas: necessidade de ambiente, porque não é fácil encontrar
lugares apropriados; razões de ordem acústica: as igrejas oferecem geralmente boas
garantias a este respeito; razões estéticas: no desejo de que o concerto seja realizado
num ambiente de beleza; razões de conveniência: para restituir às composições
executadas o seu próprio ambiente de criação; mas também razões simplesmente
práticas, sobretudo para os concertos de órgão: é que as igrejas, geralmente, dispõem
dos referidos instrumentos.
Como se pode ver desde o início, trata-se de uma tomada de
posição sobre a "música nas igrejas, fora das celebrações litúrgicas" com
uma introdução no n.º1 que assinala, desde logo, o crescente interesse pelas
execuções musicais "ao vivo", apesar da divulgação actual dos aparelhos de
gravação e reprodução sonora que não só não reduziu, mas fez inclusivamente
aumentar o interesse pelas mesmas; tal tendência vem a acentuar-se nestes quinze anos
subsequentes. Repare-se que, desde a sua publicação, já surgiram o CD e o DVD e o
"mini-disc" para não falar da divulgação musical na Net, e têm-se valorizado
consideravelmente não só as execuções ou concertos ao vivo, mas também as gravações
ao vivo sem grandes recursos técnicos ou "unplugged". Este interesse positivo
pelos concertos e por uma certa "verdade" da música levou a um aumento da
requisição das igrejas para esse efeito e isto por variadas razões:
a) razões acústicas e de ambiente favorável à escuta como
o caso excepcional de alguns templos da cidade de Viana desde a amplitude da igreja de S.
Domingos á fidelidade acústica da igreja da Misericórdia.b)
razões estéticas: interligação das artes como música, arquitectura, escultura,
talha, iconografia, e mesmo encenação; (recordo o projecto dos "Sons da
História" como exemplo entre nós)
c) razões históricas: corresponder ao ambiente e espaço
real para o qual foi criada a música, até porque grande parte do repertório de concerto
é de carácter sacro ou pelo menos religioso e tem, muitas vezes, em conta as
características da própria igreja (caso da Música de Gabrielli para S. Marcos em Veneza
ou a de Bach para S. Tomás de Leipzig) e relativamente à música de órgão, não só
ela nasceu no contexto da igreja e da liturgia, mas os próprios órgãos ainda se
encontram predominantemente nas igrejas...
d) razões litúrgicas (n. 2) porque muito do repertório
tradicional das "Scholae Cantorum" e da música litúrgica histórica não cabe
agora no contexto das celebrações litúrgicas. Aqui surge uma questão que me foi
apontada pelo Dr. Bonifácio Baroffio do PIMS de Roma sobre o facto de este documento
pretender, de forma velada, relegar para o campo da música de concerto muito do
repertório sacro tradicional das grandes capelas musicais e mesmo do canto gregoriano,
contrariando claramente o espírito e a letra do Concílio Vaticano II na Constituição
sobre a Sagrada Liturgia (nn. 114 a 116) e a Instr. "Musicam Sacram"
(n.º 4, al. b) e n.º 20). A mesma ideia vem a ser repisada adiante no n. 6, ao
apresentar os concertos como "compensação" para a impossibilidade de exibir na
liturgia obras do grande repertório, e no n.º 11 ao falar do contributo que as
"scholae" podem dar para a "preservação do tesouro musical sacro".
2. Paralelamente a este processo cultural, constata-se na igreja
uma nova situação: as "scholae cantorum" por um variado número de razões,
deixaram de ter oportunidade de executar o seu repertório habitual de música sacra
polifónica no contexto das celebrações litúrgicas. Por esta mesma razão tomaram a
iniciativa de executar esta música sacra no interior das igrejas, sob a forma de
concerto. O mesmo acabou por acontecer com o canto gregoriano que entrou na elaboração
de programas de concerto tanto no interior como fora das igrejas.
Outro facto importante é constituído pela iniciativa dos
"concertos espirituais" assim designados porque a música executada pode ser
considerada como música religiosa em virtude do tema tratado, do texto que as melodias
revestem, do clima no qual as execuções são realizadas. Em certos casos, estes
concertos podem incluir leituras, orações ou momentos de silêncio. Em razão da forma
que os caracteriza, tais concertos podem ser mesmo designados como "pia
exercitia".
É vivamente aconselhada, então , a realização de "concertos
espirituais" que, com a utilização criteriosa de textos e de melodias e mesmo de
música instrumental, podem constituir-se até como uma espécie de "pium
exercitium" ou acto devocional, celebrativo ou para-litúrgico. Trata-se de uma
eficaz experiência e eu próprio organizei muitos desses concertos corais e instrumentais
e participei em muitos outros na minha estadia em Roma, pois os nossos concertos eram
quase todos orientados por este mesmo critério. Posso mesmo dizer que a maior parte dos
concertos que faço, mesmo os de órgão a solo, têm esse princípio como base de
organização do programa. Como exemplos mais marcantes poderia citar o Concerto sobre
"O mistério Pascal na música de órgão" em Semana Santa e vários concertos
de Natal e Páscoa como foi particularmente o concerto de encerramento do Ano Jubilar na
Sé de Viana do Castelo, com a referida introdução de textos de ligação. Isto implica
que se deve mesmo levar as organizações e instituições culturais a procurar uma
adequação dos programas de concerto ao ambiente e ao espaço sagrado e mesmo aos tempos
litúrgicos ou, eventualmente, ao próprio dia litúrgico se é o caso. Não se entende
por exemplo que se faça um concerto - como se tem feito e aprovado entre nós - em tempo
de Paixão com música de Natal... nem faria muito sentido apresentar um "Stabat
Mater" no tempo de Natal ou mesmo fora do tempo de Quaresma.
3. Este progressivo acolhimento dos concertos nas igrejas
suscitou entre os párocos e reitores das mesmas algumas interrogações às quais convém
responder. Se uma abertura generalizada das igrejas a todo o género de concertos provoca
reacções e protestos por parte de muitos fiéis, uma recusa não fundamentada corre
igualmente o risco de ser mal compreendida e aceite pelos organizadores de concertos,
pelos músicos e pelos cantores. Antes de mais é importante que nos atenhamos à própria
significação das igrejas e à sua finalidade.
Para isso a Congregação para o Culto Divino julga oportuno
propor às Conferências Episcopais e, segundo a sua competência, às Comissões
Nacionais de Liturgia e de Música Sacra alguns elementos de reflexão e de
interpretação das normas canónicas concernentes ao uso dos diversos géneros de música
nas igrejas: música e canto para a liturgia, música de inspiração religiosa e música
não religiosa,
O n. 3 aponta para o risco de um confronto de reacções da parte
dos párocos, reitores e fiéis que não querem ver as suas igrejas transformadas em
auditórios ou salas de concerto, e da parte das entidades culturais que não compreendem
a eventual recusa de cedência das mesmas igrejas dada a sua importância; apela-se ao
facto de o espaço sacro ser essencialmente cultual, e todos sabemos até das
interferências do próprio Estado, através dos seus organismos, nomeadamente o IPPAR, a
esse respeito; o caso francês é, ao que parece, mais sério porque as igrejas, sendo
monumentos do Estado, são muitas vezes requisitadas para toda a espécie de reuniões e
espectáculos, mesmo de dança. Ao mesmo tempo encontramos aí outro problema que é o de
concertos nas igrejas com entradas pagas, o que sempre foi proibido pela Igreja. É no
sentido de dar apoio e proporcionar mesmo uma certa defesa aos bispos e reitores das
igrejas, que são postas à disposição estas "orientações" referentes a
execuções musicais extra-litúrgicas, mas oferece-se apenas como fundamento os
documentos que tratam expressamente da música litúrgica, e que não abordam este assunto
em concreto.
Este n. 3 coloca um problema sério que vem surgindo, por vezes,
também nos nossos meios: "as igrejas não podem ser consideradas como simples
lugares públicos, disponíveis para reuniões de todo o género; são lugares
"sagrados" isto é "colocados à parte" para o culto. Este princípio
desenvolvido adiante, nos nn. 5 e 6, entra em conflito com as ideias de muitas
instituições ligadas à cultura e aí coloco muitas das nossas - Escolas, Academias,
Câmaras, Centros Culturais, etc. - que julgam possuir e defendem o direito a utilizar
estes espaços invocando são "do povo"... Eu mesmo tive de enfrentar
situações muito sérias a este respeito e até assisti ao espectáculo de gente aos
berros, na Igreja da Misericórdia de Viana, a aplaudir uma canção de carácter
revolucionário e depois, como brinde de agradecimento deste aplauso a célebre canção,
pelo contexto, "Grândola"... Este assunto voltará a ser abordado no n.º 8. A
conservação do espaço sagrado na sua identidade e recato servirá ainda assim como
antídoto ao barulho das nossas cidades refere o documento.
4. É necessário reler, no contexto actual, os documentos já
publicados, nomeadamente a Constituição "Sacrosanctum Concilium" sobre a
sagrada liturgia, a Instrução "Musicam Sacram" de 5 de Março de 1967, a
Instrução "Liturgicae Instaurationes" de 5 de Setembro de 1970 bem como os
can. 1210, 1213 e 1222 do Código de Direito Canónico.
O can. 1210 do C.I.C. refere-se simplesmente à utilização cultual
do espaço sagrado, podendo o Ordinário do lugar permitir "acidentalmente"
("per modum actus") outros usos que não sejam contrários à santidade do
lugar. Os outros cânones citados referem-se a aspectos secundários neste contexto: a
autoridade da Igreja sobre os lugares e a redução definitiva dos mesmos a uso profano.
II - ELEMENTOS DE REFLEXÃO
Natureza e finalidade das igrejas
5. Segundo a tradição ilustrada pelo ritual da dedicação da
igreja e do altar, as igrejas são lugares onde se reúne o Povo de Deus. Este,
"congregado na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo constitui a Igreja,
templo de Deus, edificada com pedras vivas na qual o Pai é adorado em espírito e
verdade. A justo título, desde a antiguidade, o nome de igreja se foi estendendo ao
edifício no qual a comunidade cristã se reúne para escutar a palavra de Deus, rezar em
comum, receber os sacramentos, celebrar a Eucaristia, e adora-la neste lugar como
sacramento permanente" (cfr. Ritual da Dedicação da Igreja e do Altar, cap.
II, 1).
As Igrejas não podem, portanto, ser consideradas como simples
lugares públicos disponíveis para reuniões de todo o género. São lugares sagrados,
quer dizer, "colocados à parte" de maneira permanente, para o culto prestado a
Deus, pela consagração ou bênção. Como edifícios visíveis, as igrejas são sinais
da Igreja peregrina sobre a terra; imagens que anunciam a Jerusalém celeste; lugares nos
quais se actualiza desde cá de baixo o mistério da comunhão entre Deus e os homens. Nas
aglomerações urbanas e rurais, a igreja é ainda a casa de Deus, quer dizer o sinal da
sua morada entre os homens. Ela permanece portanto como lugar sagrado mesmo fora das
celebrações litúrgicas.
Numa sociedade marcada pela agitação e pelo ruído,
particularmente nas grandes cidades, as igrejas são lugares propícios onde os homens
podem encontrar, no silêncio ou na oração, a paz de espírito ou a luz da fé. Isto
não será possível senão se as igrejas conservarem a sua própria identidade. Quando
forem utilizadas para fins diferentes daquele que lhes é próprio, a sua característica
de sinal do mistério cristão é posta em perigo com danos mais ou menos graves para a
pedagogia da fé e o sentido do povo de Deus, tal como nos recorda a palavra do Senhor:
"A minha casa será casa de oração" (Lc 19, 46).
Importância da Música Sacra
6. A música sacra, tanto vocal como instrumental, merece uma
atenção positiva. Por esta denominação entendemos aqui "aquela que, composta para
a celebração do culto divino, é dotada de santidade e de perfeição de forma" (Instr.
"Musicam Sacram" n, 4). A Igreja considera-a como "um tesouro de valor
inestimável que a eleva acima das outras artes", reconhecendo-lhe "uma função
ministerial no serviço divino" (Const. "Sacrosanctum Concilium",
n. 112); ela recomenda que "este tesouro seja conservado e cultivado com a maior
solicitude" (Const. "Sacrosanctum Concilium", n. 114).
Quando a execução da música sacra se realiza durante uma
celebração, ela deve conformar-se ao ritmo e às modalidades próprias daquela. Esta
disposição obriga, muito frequentemente, a limitar o uso de obras criadas numa época em
que a participação activa dos fiéis não era proposta como fonte do verdadeiro
espírito cristão (cfr. Const. "Sacrosanctum Concilium", n. 14 e
Pio X, Motu Proprio "Tra le sollecitudini"). Esta mudança nas execução
de obras musicais é análoga à realizada por outras criações artísticas no campo
litúrgico por razões de celebração: por exemplo os santuários foram reestruturados no
que diz respeito à colocação da cadeira presidencial, do ambão, do altar voltado para
o povo. Tal não significa de modo nenhum o desprezo pelo passado, mas foi querido em
virtude de um fim mais importante como é a participação da assembleia. A eventual
limitação que pode surgir na utilização de obras musicais no decurso da liturgia pode
ser compensada pela apresentação integral que delas pode ser feito fora das
celebrações, sob a forma de concerto de música sacra.
O Órgão
7. O uso do órgão durante as celebrações litúrgicas
limita-se, hoje em dia, a algumas intervenções. No passado, o órgão substituía a
participação activa dos fiéis e envolvia a assistência daqueles que "se mantinham
espectadores mudos e inertes" da celebração (Pio XI, Const. "Divini
Cultus", n. 9). O órgão pode acompanhar e sustentar, durante as celebrações,
os cânticos sacros da assembleia ou do coro. Mas o som do órgão não deve sobrepor-se
às orações ou aos cantos executados pelo sacerdote celebrante, nem às leituras
proclamadas pelo leitor ou diácono.
O silêncio do órgão deverá ser mantido, segundo a tradição,
igualmente nos tempo penitenciais (Quaresma e Semana Santa), durante o Advento e na
liturgia de defuntos. Nestas circunstâncias, o som do órgão é unicamente permitido
para acompanhar o canto. É bom que o órgão seja utilizado mesmo longamente para
preparar e para concluir as celebrações. É muito importante que em todas as igrejas,
mas especialmente nas mais importantes, não faltem os músicos competentes e instrumentos
musicais de qualidade. Ter-se-á um particular cuidado com os órgãos antigos sempre
preciosos pelas suas características.
Os nn. 5 a 7 falam da importância das igrejas como espaços
sagrados, da música sacra e da música de órgão e respectiva execução, no contexto
das celebrações litúrgicas, o que, podemos notar, não tem muito a ver com o objectivo
primário do documento. Mais uma vez se nota uma certa incoerência e
descontextualização das afirmações deste documento, e volta-se a evidenciar uma certa
confusão entre música litúrgica e música sacra agora "transformada"
simplesmente em música de concerto. Ao mesmo tempo é notória a questão de se
considerar a execução, em concerto, da música sacra como compensação para o facto de
o grande repertório ter sido excluído das celebrações litúrgicas por obstar à
participação dos fiéis nas celebrações.
III - DISPOSIÇÕES PRÁTICAS
8. A regulamentação do uso das igrejas é determinada pelo can.
1210 do Código de Direito Canónico: "não será admitido num espaço sagrado senão
aquilo que serve o culto, a piedade ou a religião e será aí proibido tudo aquilo que
não convém à santidade do lugar. Entretanto, o Ordinário pode permitir ocasionalmente
outros usos que não sejam contudo contrários à santidade do lugar".
O princípio segundo o qual a utilização das igrejas não deve
ser contrária à santidade do lugar determina o critério segundo o qual convém abrir as
portas das igreja a um concerto de música sacra ou religiosa e fechá-las a todas as
outras espécies de música. A mais bela música sinfónica, por exemplo, não é em si
religiosa. Esta qualificação deve resultar explicitamente do fim original das peças
musicais ou cantos e do seu conteúdo.
Não é legítimo programar numa igreja a execução de uma
música que não é de inspiração religiosa e que foi composta para ser executada em
precisos contextos profanos, seja ela clássica, contemporânea, erudita ou popular: tal
não respeitaria nem o carácter sagrado da igreja, nem mesmo a própria obra musical pois
não seria executada no sem ambiente natural. Compete à autoridade eclesiástica exercer
livremente os seus poderes nos lugares sagrados (cfr. Can. 1213) e portanto regulamentar a
utilização das igrejas fazendo respeitar o seu carácter sagrado.
No capítulo das "disposições práticas", neste número
8, aparece a afirmação mais importante e ao mesmo tempo claramente redutora de
"abrir os espaços sagrados a concertos de música sacra ou religiosa e
fechá-los a toda e qualquer outra espécie de música". Sobre o carácter religioso
ou profano da música "sinfónica" poderíamos escrever todo um tratado;
parece-me demasiado redutora uma afirmação destas porque que vem a proibir praticamente
todos os concertos que se realizam nas igrejas. Foi por isso mesmo que, no nosso caso,
abrimos, então, a porta a manifestações que, pelo menos, não desdigam da santidade do
lugar.
Compete precisamente ao perito em música avaliar, para além de
muitos outros aspectos não tanto técnicos, o estilo, o género, o carácter ou o
"ethos" da música a executar. Nesse sentido, e, em linhas gerais, eu apontaria
alguns critérios que costumo levar em conta:
Para a música vocal é preciso ver o texto e a música das obras,
que devem ser desprovidos de qualquer tipo de significação, de conotação ou mesmo
insinuação inconveniente ou mesmo duvidosa no seu conteúdo; poderão, por isso, ser
admitidas obras corais, corais-sinfónicas ou Lieder (espécie de canção para voz e
instrumento) que no texto não apelam nem referem sensações, ideias ou pensamentos
incompatíveis com o lugar sagrado, ainda que não sejam de índole estritamente
religiosa. A possibilidade de o público perceber ou não a língua em que se canta
também é importante, sendo que se deve partir do facto de que entende, pois, caso
contrário não aprecia devidamente o concerto e a mensagem que ele pretende comunicar.
Penso que é de rejeitar a ideia de que "as pessoas não entendem e por isso pode-se
fazer"...
No caso particular da música puramente instrumental aceita-se uma
música capaz de provocar apenas uma reacção ou resposta de carácter estético e que,
de preferência, inspire uma elevação espiritual; trata-se daquela música habitualmente
apelidada de "música pura", que se aprecia em função da forma, como seja uma
sonata para piano, um quarteto, uma sinfonia ou concerto ou mesmo certos poemas
sinfónicos, etc. O mesmo não se pode dizer de uma música que evoque um ambiente de
dança como seria uma "suite" (a não ser que se trate de música antiga que
perdeu já esse carácter) uma "rapsódia" a não ser que descontextualizada do
ambiente de origem (como as "rapsódias húngaras" de Liszt, ou a "Rapsody
in Blue" de Gershwin), ou uma "valsa" ainda que fora de Viena... É de
evitar toda aquela música mais expressiva que, sendo apenas instrumental, pode estar
ligada a textos ou contextos evocativos de ambientes marcadamente profanos como por
exemplo alguns trechos de ópera, ainda que instrumentais, mas que evocam cenas violentas,
sensuais ou eróticas. É importante ter em conta a conotação ligada a certas músicas,
não derivada da sua composição ou contexto em que originalmente se inserem, mas uma
conotação que deriva de um uso diferente como a ligação à publicidade, a determinadas
imagens ou a mensagens televisivas. Por exemplo, ao ouvir as "Quatro Estações"
de Vivaldi evocar uma marca de sanitas... ao ouvir o Quinto Concerto para Violino de
Mozart evocar uma marca de chocolates... ou ao ouvir a famosíssima e tanto tocada na
igreja "Ária da corda Sol" de Bach, evocar uma conhecida marca de wisky.
É por isto mesmo que se afigura mais importante do que parece à
primeira vista, a consulta de um verdadeiro perito em música; é que uma apurada
sensibilidade e atenção aos fenómenos sócio-musicais, a audição e o conhecimento das
obras, e a necessária análise das partituras quando não há possibilidade de acesso a
uma gravação são condições importantes para uma avaliação e um parecer correcto e
fundamentado, o que não está normalmente ao alcance dos responsáveis pela
autorização.
A posição da autoridade eclesiástica exerce-se - segundo o
documento presente - particularmente no sentido de velar pela preservação da santidade
do lugar e, portanto, da não utilização do mesmo para concertos de música profana pelo
que, dada a diversidade de situações que podem afectar tal santidade, precisará
forçosamente de ajuda.
9. A música sacra, isto é, aquela que foi composta para a
liturgia, mas que por razões actuais não pode ser executada durante uma celebração
litúrgica, e a música religiosa, quer dizer, aquela que se inspira em textos da Sagrada
Escritura, da Liturgia ou que está em relação com Deus, a Virgem Maria, os Santos ou a
Igreja, podem ter o seu lugar na igreja, fora das celebrações litúrgicas. O toque do
órgão ou outras execuções musicais, vocais ou instrumentais, podem "servir ou
favorecer a piedade ou a religião" (cfr. Can. 1210). Elas têm uma utilidade
particular:
a) para preparar as principais festas litúrgicas ou dar-lhes uma
grande solenidade fora das celebrações específicas;
b) para acentuar o carácter particular dos diversos tempo
litúrgicos
c) para criar nas igrejas um clima de beleza e de meditação que
ajuda e promove, mesmo naqueles que estão afastados da igreja, uma predisposição para
acolher os valores do espírito;d) para criar um
contexto que torne mais fácil e acessível a proclamação da Palavra de Deus: por
exemplo uma leitura contínua do Evangelho;
e) para manter vivos os tesouros da música de igreja que não
devem deixar-se perder: músicas e cantos compostos para a liturgia, mas que nem sempre
nem facilmente podem entrar nas actuais celebrações litúrgicas: músicas espirituais
como os Oratórios, as Cantatas Sacras que continuam a ser meios de comunicação
espiritual.
f) para ajudar os visitantes e turistas a melhor apreender o
carácter sacro da igreja, por meio de concertos de órgão previstos para horas
determinadas.
Este número aponta para o assunto já antes abordado de uma
definição de música sacra e religiosa que, não podendo ser executada na liturgia pode
favorecer a piedade dos fiéis. Aqui cabe então perguntar: porque é que tal música não
pode mesmo integrar a liturgia, ainda que em momentos bem determinados e em função da
dinâmica da própria celebração? Falamos de um motete, falamos de um excerto de
cantata, falamos de uma peça de órgão, falamos de um Gradual gregoriano. Esta música
era e continua a ser litúrgica e não precisamos de organizar concertos nas igrejas para
"consolação" dos cantores e compositores. Se é um facto que muitos dos
cantores, directores e compositores se sentiram um tanto frustrados pela prática
"iconoclasta" derivada de uma deficiente aplicação da reforma conciliar que
atirou para fora das celebrações muito do seu mérito e dos seu trabalho - recordo o
drama, por exemplo, do Dr. Manuel Faria e de Mons. Domenico Bartolucci junto com tantos
outros compositores, ou o facto de serem "expulsos" das igrejas tantos bons
grupos corais - uma aplicação equilibrada e dentro do espírito da reforma litúrgica
conciliar permite mesmo assim uma execução não só deste repertório, mas de muito do
repertório a que chamamos clássico ou histórico.
O mais curioso deste documento é que fala mais da utilidade da
música religiosa que da questão dos concertos nas igrejas, ou seja, parece que o
problema não se centra na existência de concertos, mas na necessidade - bem museológica
- de promover concertos para aproveitar a música religiosa pelos tantos e tão
grandes benefícios que ela pode trazer e preservar bem assim o rico tesouro
sacro-musical. Vejam-se, por exemplo, as alíneas a) a f) que apontam objectivos dos
concertos nas igrejas que vão desde o ajudar à elevação dos fiéis para Deus até
ajudar os turistas a apreender o carácter sacro do lugar que visitam; quer dizer, a
música reduzida à dimensão de "música de fundo".
10. Quando os organizadores pedem para utilizar uma igreja para a
realização de um concerto, pertence ao Ordinário dar o seu aval à concessão "per
modum actus". Isto deve ser entendido sempre como algo ocasional. Tal exclui, por
conseguinte, uma concessão cumulativa, por exemplo no quadro de um festival ou de um
ciclo de concertos. Se o Ordinário o considerasse necessário, poderia, nas condições
previstas pelo Código de Direito Canónico, can. 1222, § 2, destinar uma igreja que não
se utiliza já para o culto, como "auditório" para a execução de música
sacra ou religiosa, ou mesmo para execuções musicais profanas, com a condição de que
essas execuções não destoem da sacralidade do lugar. Nesta tarefa pastoral, o
Ordinário encontrará ajuda e conselho, na Comissão Diocesana de Liturgia e Música
Sacra. Para que a sacralidade das igrejas seja salvaguardada, observar-se-ão,
relativamente às autorizações de concertos, as condições seguintes que o Ordinário
poderá precisar:
a) dever-se-á, em tempo útil, apresentar um pedido por escrito
ao Ordinário do lugar com a indicação da data do concerto, o horário e o programa
contendo as obras e nome dos autores;b) depois de ter
recebido a autorização do Ordinário, os párocos e reitores das igrejas poderão
autorizar a utilização da sua igreja aos coros e orquestras que preencherão os
requisitos adiante assinalados;
c) a entrada nas igrejas será sempre libre e gratuita
d) os executantes e ouvintes deverão manter uma postura e um
comportamento convenientes ao carácter sagrado da igreja;e)
Os músicos e cantores evitarão ocupar o santuário (capela mor); será reservado o maior
respeito para com o altar, a cadeira presidencial e o ambão.
f) Na medida do possível, o Santíssimo Sacramento será
conservado numa capela anexa, ou noutro lugar seguro e digno (cfr. Can. 938, § 4);
g) o concerto será apresentado e eventualmente acompanhado de
comentários que não devem ser unicamente de ordem artística ou histórica, mas que
favoreçam uma melhor compreensão e uma participação interior dos ouvintes.
h) o organizador do concerto assumirá por escrito a
responsabilidade civil, as despesas, a colocação do espaço em ordem e a reparação de
eventuais danos.
Para além de apelar ao cumprimento do can. 1210, já acima
comentado, acrescenta-se agora mais um aspecto que tem a ver com o contexto francês: o
caso dos festivais centrados num único lugar e que o documento exclui pura e
simplesmente. É evidente que não se trata, como no caso dos nossos "Sons da
História", de um ciclo de concertos ou festival em diferentes lugares, o que não
destoaria, pois se trata de concertos isolados, apenas com programação geral integrada,
mas trata-se sim de tomar uma igreja para auditório de uma série de concertos durante
uma semana ou uma quinzena, por exemplo. Ora a realização de dezenas de festivais desses
é ainda vulgar em França e uma das maiores atracções do Verão nesse país, podendo-se
apontar como um dos mais famosos o da abadia de Chaise-Dieu. Não me consta que se tenham
interrompido esses festivais, pelo contrário, sei que se continuam a realizar porque vejo
a publicidade dos mesmos e muitos desses festivais são mesmo organizados sob os
auspícios de Abadias, de Cabidos ou de Associações de Amigos das Catedrais, como é o
caso aqui bem perto da Catedral de Tuy.
Depois de comentar o já citado can. 1222, diz o nosso documento que
"em toda esta tarefa pastoral o Ordinário do lugar encontrará ajuda e conselho na
Comissão Diocesana de Liturgia Música Sacra". É evidente que quando se fala de
liturgia se pensa nos casos em que a liturgia e música se encontram no mesmo organismo e
não em chegar ao ponto de - caso que vigorou entre nós - consultar o secretário da
pastoral litúrgica como se ele fosse perito em música... Muito menos, alguém sem
qualquer competência no assunto, se arvorar em perito em música e sem mais a autorizar
ou não os concertos.
Nas condições apontadas para a autorização de um concerto em
espaço sacro - tendo sempre em conta que se trata, no contexto do documento, de concertos
de música sacra ou de música religiosa - ressalta o facto confirmado na alínea c) da proibição
de cobrar bilhetes, prática frequente em França e ainda actualmente aplicada aqui
bem perto de nós, na Póvoa de Varzim, no quadro do Festival de Música desta cidade da
Arquidiocese de Braga. Tive uma grande dificuldade há uns anos, em Viana, para convencer
os responsáveis do "Cheur d' Enfants de Paris" de que não poderiam cobrar
bilhetes na Igreja de S. Domingos. Como recurso, e dada a proibição nossa, optaram por
fazer um "peditório" que não deve ter rendido quase nada, para além do
ridículo que representou... O resto das condições apontadas no documento vai-se
respeitando mais ou menos.
11. As precedentes disposições práticas pretendem contribuir
para ajudar os Bispos e os reitores de igrejas no esforço pastoral de que estão
incumbidos no sentido de manter a todo o momento o carácter próprio das igrejas
destinadas às celebrações, à oração e ao silêncio. Tais medidas não devem de modo
nenhum ser consideradas como uma falta de interesse pela arte musical.
O tesouro da música sacra permanece como um testemunho do modo
como a fé cristã pode promover a cultura humana. Conferindo o seu verdadeiro valor à
música sacra ou religiosa, os músicos cristãos e os membros das "Scholae
cantorum" devem sentir-se encorajados a prosseguir esta tradição e a mantê-la viva
ao serviço da fé, segundo o convite que lhes foi feito pelo Concílio Vaticano II na sua
mensagem aos artistas: "Não recuseis colocar o vosso talento ao serviço da verdade
divina. O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A
beleza, como a verdade, põe alegria no coração dos homens. E isto pelas vossas
mãos" (Concílio Vaticano II, "Mensagem aos Artistas, 8 de Dezembro de 1965)
Roma, 5 de Novembro de 1987
Paul Augustin, Card. Mayer
Prefeito
Virgílio Noé
Secretário
Esta conclusão é muito "eclesiástica": depois de tudo,
volta a referir que tais medidas não podem ser consideradas como "falta de interesse
pela arte musical" e reitera a ideia de que "o tesouro da música sacra"
permanece um testemunho de como a fé pode promover a cultura humana. Cabe-nos então
perguntar se a fé só consegue promover a cultura da música sacra e religiosa e não a
cultura em geral, ou então, se a música profana, contanto que digna do espaço sagrado,
não é também cultura humana; isto aliás no sentido das mesmas afirmações do
Concílio que aqui se citam. Esta confusão deriva, em grande parte, do facto de, como
tantas outras vezes, se pretender conciliar o inconciliável, se pretender rosas sem
espinhos, se pretender o lado cómodo das pessoas e das coisas, mas rejeitar os incómodos
decorrentes, ao mesmo tempo que pretendem abordar determinados assuntos as pessoas não
devidamente preparadas para o efeito.
Concluindo, estamos perante um documento um tanto infeliz, muito
limitado, precipitado, desenquadrado da realidade com pressupostos localizados, e
rapidamente lançado a todo o universo da igreja e, como tal entendido e aplicado sem
critério pelos mais rigoristas, mas que, quanto sei, ninguém, com um mínimo de
conhecimento de causa, seguiu em qualquer parte do mundo... Num recente documento
intitulado "Música e Liturgia, Critérios e orientações pastorais",
apresentado como homilia em Quinta-feira Santa e depois publicado em vários órgãos de
música e liturgia, mesmo nacionais, o Arcebispo de Braga aborda também esta questão dos
concertos nas igrejas; curiosamente limita-se a fazer um simples resumo do n.º 10 deste
documento e assume, parece que quase sem dar por isso, a mesma orientação no que
respeita aos géneros de música que limita à música sacra. Resultado: ninguém o leva a
sério e nem sequer pedem autorização para a realização dos concertos. O facto é que
este documento em vez de vir ajudar a resolver os verdadeiros problemas que se colocam aos
responsáveis desde os Bispos a todos os que directamente têm que lidar, no terreno, com
a gente da cultura, veio colocar mais problemas ainda, com uma linguagem e uma qualidade
de argumentos pouco convincentes numa questão que deveria ser efectivamente um espaço de
diálogo da Igreja com o mundo, da religião com a cultura e mesmo do espaço sagrado com
as verdadeiras formas de nos relacionarmos com Deus.
Meadela, 22 de Maio de 2002
Jorge Alves Barbosa |