Amigas e amigos,
Minhas senhoras e meus senhores:
Começo por vos pedir desculpa desta
minha falta de respeito pelas questões protocolares, e de
iniciar esta intervenção com esta simples saudação. Mas eu
creio, assim como muitos de vós certamente, que numa
cerimónia como esta, o protocolo não tem grande sentido e
deve ser colocado em secundaríssimo plano. Porque na verdade
o único protocolo que aqui tem sentido e que aqui nos reúne
é o protocolo da amizade. É que de facto nós estamos aqui
porque fomos, e continuaremos a ser para sempre, amigos do
Fernando.
Quando a Berta me convidou para usar
da palavra nesta homenagem senti que a minha resposta só
podia ser positiva e por isso aceitei, sem protesto, este
desafio. De facto, que argumento é que eu podia ter para
recusar? Que sentido teria dizer não? Seria possível colocar
de lado uma amizade que se cimentou e cresceu ao longo de 40
anos?
Já que aceitei este desafio, quero,
em primeiro lugar, recordar o Fernando como amigo. E estava
tentado a dizer quero recordar o Fernando como um irmão. A
nossa amizade começou no Seminário da Figueira da Foz e
estendeu-se ao de Coimbra. Depois prolongou-se na Faculdade
de Letras, onde frequentámos primeiro a Licenciatura em
Filosofia e posteriormente o Mestrado em Filosofia
Contemporânea. Mas como se isto não bastasse ao longo de 40
anos ainda fomos capazes de prolongar esta escola formal na
escola informal da vida e das famílias! Quantas horas de
cavaqueira, férias conjuntas, passeios, refeições
familiares, festas de aniversário, futebóis jogados e
assistidos no tradicional desporto de poltrona e bancada,
enfim, um rol que nunca mais acabaria de enumerar e que nos
permitiu também descobrir outros amigos comuns, muitos deles
hoje aqui presentes, amigos esses que foram capazes de nos
provar, sempre com um brilhozinho nos olhos, que fazer e ter
amigos é a coisa mais preciosa, como nos diz essa conhecida
canção de Sérgio Godinho.
Em segundo lugar eu gostaria de
recordar aqui o Fernando, como colega que abraçou a mesma
profissão, ou se quiserem, como profissional do mesmo
ofício. Tive o privilégio de trabalhar como ele na mesma
escola, sei que como eu acreditava que o segredo do sucesso
é em primeiro lugar uma boa relação pedagógica e foi por
isso que também deixou, na maior parte dos seus alunos, o
selo da amizade. Pode ter acontecido que um ou outro não
tenha gostado dele. Mas isso só abona a seu favor! Muitas
vezes falámos deste aspecto nas nossas cavaqueiras e sempre
chegámos à mesma conclusão! Não se pode agradar a gregos e a
troianos e saber que certas pessoas não gostam de nós,
muitas vezes não deve ser motivo de preocupação mas sim de
orgulho! É sinal de que somos diferentes, e que somos feitos
doutro barro.
Além de ter uma boa relação com os
alunos, o Fernando pautou a sua vida por princípios de rigor
pedagógico e científico dentro da sala de aula e foi sempre
um homem coerente. E a sua coerência era radical. Não
resisto até a contar um episódio anedótico que é bem a prova
dessa sua coerência radical e sobretudo do seu refinado
sentido de humor, que tanto apreciávamos.
Consta que um dia um dos seus alunos chegou
atrasado à aula. Como se isso não bastasse ainda se atreveu
a pedir ao professor que lhe desse autorização para ir à
casa de banho! O quê? Para que é que servem os intervalos? Ó
professor… mas eu preciso mesmo! Precisas? Só se fores
incontinente! Incontinente? O que é isso? Ora, ora, um
incontinente é aquele que não é do Continente! Aqui a turma
já ria à gargalhada quer pela resposta do professor quer
pela ignorância do colega! Mas o melhor estava para vir…E
diz o aluno: ó professor…eu não sou do Continente…sou da
Madeira! Claro que o professor não teve alternativa! Então
podes ir à casa de banho! Ai coerência a quanto obrigas!
Mas o Fernando não mantinha uma boa
relação só com os alunos. Matinha essa mesma boa relação
também com os colegas de profissão, que tinham nele um amigo
sempre pronto para ajudar a resolver problemas e sempre
pronto a colaborar no engrandecimento das suas escolas. Além
disso o Fernando era um professor e um colega respeitado e
foi também um lider capaz de pensar criticamente a
instituição escolar. Se alguém tem dúvidas sobre o que
acabo de afirmar, atente nesta passagem da sua Tese de
Mestrado:
“ Hoje o discurso do Mestre
encontra-se banalizado, dessacralizado, em pé de igualdade
com os media. O aluno passa por vezes mais tempo diante do
pequeno ecrã do que na sala de aula. Para não falar já da
atracção de um e de outro. Deste modo, hoje mais que
reformar as estruturas, importa promover antes uma reforma
do espírito do ensino. Parece-nos que qualquer reforma do
ensino estará votada ao fracasso enquanto não for
reconhecida e valorizada a dignidade da função educativa e
os docentes não tiverem reencontrado o lugar que lhes
pertence na sociedade. A preocupação base não pode ser com
os novos programas. Tem que ser com o novo espírito. Uma
pedagogia da evolução, da crise, da mudança” .
O facto de ter aqui evocado a sua
Tese de Mestrado permite-me referenciar um terceiro aspecto:
o Fernando enquanto pensador, enquanto homem de reflexão, e
atrevo-me a dizer, porque não? enquanto filósofo. Em 1992,
fruto do seu Mestrado em Filosofia Contemporânea, o Fernando
defendeu na Faculdade de Letras de Coimbra, a tese
intitulada “Gabriel Marcel: da Angústia à Esperança”.
Nessa altura fui contemplado com a oferta de um exemplar com
direito a dedicatória e escusado será referir o agrado que
senti com tal gesto e o deleite que tive com a leitura da
obra.
Gostaria desde já de registar aqui
que o Fernando, nessa sua obra, foi capaz de nos
proporcionar uma bela meditação sobre a condição humana. Tal
como o seu Mestre, o pensador francês Gabriel Marcel, também
ele foi capaz de reflectir no drama da vida como ele se
apresenta a cada um de nós, sempre a partir de situações
concretas e nunca de esquemas ou noções abstractas. Tal como
Gabriel Marcel também se pode dizer que este nosso amigo foi
capaz de sentir os limites, as aspirações, os enigmas, as
hesitações da condição humana, na certeza de que o filósofo
deve escavar cada vez mais a sua interioridade, procurando
afincadamente cumprir o lema socrático “conhece-te e ti
mesmo” mas sempre na certeza de que tal só é possível
se cada um de nós se reconhecer em todos os outros, porque
os humanos vivem em comunidade e isso faz parte essencial da
sua natureza. Como muitos outros pensadores o Fernando
acreditava – e a sua vida foi exemplo pleno disso mesmo –
que o mundo é um horizonte de relacionamentos vividos e
partilhados com todos os seres do universo, porque só assim
podemos criar um mundo mais acolhedor, mais fraterno e
afectivo.
Gabriel Marcel, pensador que adoptou como seu
mestre, procurou recuperar o sentido da festa. O Fernando
levou tal sentido à letra. Familiares e amigos sabem bem que
a sua vida foi uma festa porque ele sabia e acreditava que
só na festa se pode passar da angústia à esperança.
Consciente do mundo em que viveu o
Fernando foi capaz de denunciar a “contradição da nossa
sociedade” que cada vez mais favorece um processo
sistemático de isolamento do indivíduo ou o processo de
valorização narcísica . E por isso mesmo escreveu:
“Quanto mais a sociedade se humaniza, mais
o sentimento de anonimato se estende; quanto mais há
indulgência e tolerância, mais aumenta a falta de segurança
do indivíduo em relação a si próprio; quanto mais se
prolonga o tempo de vida, mais medo se tem de envelhecer;
quanto menos se trabalha, menos se quer trabalhar; quanto
mais os costumes se liberalizam mais avança a impressão do
vazio; quanto mais a comunicação e o diálogo se
institucionalizam, mais sós se sentem os indivíduos e com
maiores dificuldades de contacto; quanto mais cresce o
bem-estar mais a depressão triunfa.”
Ao ouvir estas palavras, alguns
podem estar tentados a pensar que estamos perante um
pessimista! Não! Como homem de fé que sempre foi, acreditou
que o rio da esperança pode conduzir ao invisível. Por isso
escreveu “ Quando no meio do que tenho - riqueza ou
pobreza, talento ou necessidade, descubro uma chispa do que
sou, começo a abrir-me à esperança. E esperar é existir num
tempo aberto ao novo. A vida com esperança é sempre uma vida
criadora.” Por isso sempre nos mostrou, com o seu
exemplo de vida, que a esperança, enquanto abertura para
além do mundo visível, é que nos ajuda a encontrar um
sentido para a vida. E também por isso mesmo foi capaz de
nos dizer que “por mais limitações que a vida nos
coloque, arranjamos sempre lugar para o que amamos
verdadeiramente” e ainda “ sempre que o homem tem a
coragem de encarar as interrogações mais sérias da
existência humana, especialmente as do sentido do viver, de
sofrer e de morrer, não pode deixar de ser um homem de
esperança.”
Penso que esta obra do Fernando
merecia ser publicada e divulgada. Faço nesta plateia o
desafio, na certeza de que a publicação da sua tese seria
outra forma muito digna e muito justa de perpetuar a sua
memória, mas sobretudo porque acredito na qualidade do muito
que podemos aprender com ela. E porque sei também que isso
poderia ser outro acto de partilha tão importante como todos
os outros com que nos brindou. Até porque como ele também
escreveu: “Ainda que o outro porventura desapareça
fisicamente, que eu seja impossibilitado de estar com ele,
no entanto ele não desaparece, mas pelo contrário, estará
porventura mais vivo em mim do que nunca. Não há amor
humano, digno desse nome, que não contenha em si uma semente
de imortalidade.”
J. Vieira Lourenço |