Homenagem - 18setembro2005 - Discurso de Dr. José Vieira

 

 

Amigas e amigos,

Minhas senhoras e meus senhores:

         Começo por vos pedir desculpa desta minha falta de respeito pelas questões protocolares, e de iniciar esta intervenção com esta simples saudação. Mas eu creio, assim como muitos de vós certamente, que numa cerimónia como esta, o protocolo não tem grande sentido e deve ser colocado em secundaríssimo plano. Porque na verdade o único protocolo que aqui tem sentido e que aqui nos reúne é o protocolo da amizade. É que de facto nós estamos aqui porque fomos, e continuaremos a ser para sempre, amigos do Fernando.

         Quando a Berta me convidou para usar da palavra nesta homenagem senti que a minha resposta só podia ser positiva e por isso aceitei, sem protesto, este desafio. De facto, que argumento é que eu podia ter para recusar? Que sentido teria dizer não? Seria possível colocar de lado uma amizade que se cimentou e cresceu ao longo de 40 anos?

         Já que aceitei este desafio, quero, em primeiro lugar, recordar o Fernando como amigo. E estava tentado a dizer quero recordar o Fernando como um irmão. A nossa amizade começou no Seminário da Figueira da Foz e estendeu-se ao de Coimbra. Depois prolongou-se na Faculdade de Letras, onde frequentámos primeiro a Licenciatura em Filosofia e posteriormente o Mestrado em Filosofia Contemporânea. Mas como se isto não bastasse ao longo de 40 anos ainda fomos capazes de prolongar esta escola formal na escola informal da vida e das famílias! Quantas horas de cavaqueira, férias conjuntas, passeios, refeições familiares, festas de aniversário, futebóis jogados e assistidos no tradicional desporto de poltrona e bancada, enfim, um rol que nunca mais acabaria de enumerar e que nos permitiu também descobrir outros amigos comuns, muitos deles hoje aqui presentes, amigos esses que foram capazes de nos provar, sempre com um brilhozinho nos olhos, que fazer e ter amigos é a coisa mais preciosa, como nos diz essa conhecida canção de Sérgio Godinho.

         Em segundo lugar eu gostaria de recordar aqui o Fernando, como colega que abraçou a mesma profissão, ou se quiserem, como profissional do mesmo ofício. Tive o privilégio de trabalhar como ele na mesma escola, sei que como eu acreditava que o segredo do sucesso é em primeiro lugar uma boa relação pedagógica e foi por isso que também deixou, na maior parte dos seus alunos, o selo da amizade. Pode ter acontecido que um ou outro não tenha gostado dele. Mas isso só abona a seu favor! Muitas vezes falámos deste aspecto nas nossas cavaqueiras e sempre chegámos à mesma conclusão! Não se pode agradar a gregos e a troianos e saber que certas pessoas não gostam de nós, muitas vezes não deve ser motivo de preocupação mas sim de orgulho! É sinal de que somos diferentes, e que somos feitos doutro barro.

         Além de ter uma boa relação com os alunos, o Fernando pautou a sua vida por princípios de rigor pedagógico e científico dentro da sala de aula e foi sempre um  homem coerente. E a sua coerência era radical. Não resisto até a contar um episódio anedótico que é bem a prova dessa sua coerência radical e sobretudo do seu refinado sentido de humor, que tanto apreciávamos.

Consta que um dia um dos seus alunos chegou atrasado à aula. Como se isso não bastasse ainda se atreveu a pedir ao professor que lhe desse autorização para ir à casa de banho! O quê? Para que é que servem os intervalos? Ó professor… mas eu preciso mesmo! Precisas? Só se fores incontinente! Incontinente? O que é isso? Ora, ora, um incontinente é aquele que não é do Continente! Aqui a turma já ria à gargalhada quer pela resposta do professor quer pela ignorância do colega! Mas o melhor estava para vir…E diz o aluno: ó professor…eu não sou do Continente…sou da Madeira! Claro que o professor não teve alternativa! Então podes ir à casa de banho! Ai coerência a quanto obrigas!

         Mas o Fernando não mantinha uma boa relação só com os alunos. Matinha essa mesma boa relação também com os colegas de profissão, que tinham nele um amigo sempre pronto para ajudar a resolver problemas e sempre pronto a colaborar no engrandecimento das suas escolas. Além disso o Fernando era um professor e um colega respeitado e foi também um lider capaz de pensar criticamente a instituição  escolar. Se alguém tem dúvidas sobre o que acabo de afirmar, atente nesta passagem da sua Tese de Mestrado:

         “ Hoje o discurso do Mestre encontra-se banalizado, dessacralizado, em pé de igualdade com os media. O aluno passa por vezes mais tempo diante do pequeno ecrã do que na sala de aula. Para não falar já da atracção de um e de outro. Deste modo, hoje mais que reformar as estruturas, importa promover antes uma reforma do espírito do ensino. Parece-nos que qualquer reforma do ensino estará votada ao fracasso enquanto não for reconhecida e valorizada a dignidade da função educativa e os docentes não tiverem reencontrado o lugar que lhes pertence na sociedade. A preocupação base não pode ser com os novos programas. Tem que ser com o novo espírito. Uma pedagogia da evolução, da crise, da mudança” .

         O facto de ter aqui evocado a sua Tese de Mestrado permite-me referenciar um terceiro aspecto: o Fernando enquanto pensador, enquanto homem de reflexão,  e atrevo-me  a dizer, porque não? enquanto filósofo. Em 1992, fruto do seu Mestrado em Filosofia Contemporânea, o Fernando defendeu na Faculdade de Letras de Coimbra, a tese intitulada “Gabriel Marcel: da Angústia à Esperança”. Nessa altura fui contemplado com a oferta de um exemplar com direito a dedicatória e escusado será referir o agrado que senti com tal gesto e o deleite que tive com a leitura da obra.

         Gostaria desde já de registar aqui que o Fernando,  nessa sua obra,  foi capaz  de nos proporcionar uma bela meditação sobre a condição humana. Tal como o seu Mestre, o pensador francês Gabriel Marcel, também ele foi capaz de reflectir no drama da vida como ele se apresenta a cada um de nós, sempre a partir de situações concretas e nunca de esquemas ou noções abstractas. Tal como Gabriel Marcel também se pode dizer que este nosso amigo foi capaz de sentir os limites, as aspirações, os enigmas, as hesitações da condição humana, na certeza de que o filósofo deve escavar cada vez mais a sua interioridade, procurando afincadamente cumprir o lema socrático “conhece-te e ti mesmo” mas sempre na certeza de  que tal só é possível se cada um de nós se reconhecer em todos os outros, porque os humanos vivem em comunidade e isso faz parte essencial da sua natureza. Como muitos outros pensadores o Fernando acreditava – e a sua vida foi exemplo pleno disso mesmo – que o mundo é um horizonte de relacionamentos vividos e partilhados com todos os seres do universo, porque só assim podemos criar um mundo mais acolhedor, mais fraterno e afectivo.

Gabriel Marcel, pensador que adoptou como seu mestre, procurou recuperar o sentido da festa. O Fernando levou tal sentido à letra. Familiares e amigos sabem bem que a sua vida foi uma festa porque ele sabia e acreditava que só na festa se pode passar da angústia à esperança.

         Consciente do mundo em que viveu o Fernando foi capaz de denunciar a “contradição da nossa sociedade” que cada vez mais favorece  um processo sistemático de isolamento do indivíduo ou  o processo  de valorização narcísica . E por isso mesmo escreveu: “Quanto mais a sociedade se humaniza, mais o sentimento de anonimato se estende; quanto mais há indulgência e tolerância, mais aumenta a falta de segurança do indivíduo em relação a si próprio; quanto mais se prolonga o tempo de vida, mais medo se tem de envelhecer; quanto menos se trabalha, menos se quer trabalhar; quanto mais os costumes se liberalizam mais avança a impressão do vazio; quanto mais a comunicação e o diálogo se institucionalizam, mais sós se sentem os indivíduos e com maiores dificuldades de contacto; quanto mais cresce o bem-estar mais a depressão triunfa.”

           Ao ouvir estas palavras, alguns podem estar tentados a pensar que estamos perante um pessimista! Não! Como homem de fé que sempre foi, acreditou que o rio da esperança pode conduzir ao invisível. Por isso escreveu “  Quando no meio do que tenho - riqueza ou pobreza, talento ou necessidade, descubro uma chispa do que sou, começo a abrir-me à esperança. E esperar é existir num tempo aberto ao novo. A vida com esperança é sempre uma vida criadora.” Por isso sempre nos mostrou, com o seu exemplo de vida, que a esperança, enquanto abertura para além do mundo visível, é que nos ajuda a encontrar um sentido para a vida. E também por isso mesmo foi capaz de nos dizer que “por mais limitações que a vida nos coloque, arranjamos sempre lugar para o que amamos verdadeiramente” e  ainda “ sempre que o homem tem a coragem de encarar as interrogações mais sérias da existência humana, especialmente as do sentido do viver, de sofrer e de morrer, não pode deixar de ser um homem de esperança.”

         Penso que esta obra do Fernando merecia ser publicada e divulgada. Faço nesta plateia o desafio, na certeza de que a publicação da sua tese seria outra forma muito digna e muito justa de perpetuar a sua memória, mas sobretudo porque acredito na qualidade do muito que podemos aprender com ela. E porque sei também que isso poderia ser outro acto de partilha tão importante como todos os outros com que nos brindou. Até porque como ele também escreveu: “Ainda que o outro porventura desapareça fisicamente, que eu seja impossibilitado de estar com ele, no entanto ele não desaparece, mas pelo contrário, estará porventura mais vivo em mim do que nunca. Não há amor humano, digno desse nome, que não contenha em si uma semente de imortalidade.

J. Vieira Lourenço

 
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