Francisco Nuno Torres Mendes Ramos - GERAL

 
 
A "ROSÁCEA" DO TÚMULO DO REI D. PEDRO I DE PORTUGAL
in: http://www.fuesp.com/revistas/pag/cai1120.htm

A PROCURA DE UM MODELO ICONOGRÁFICO

O título desta minha comunicação é A "rosácea" do túmulo do rei D. Pedro I de Portugal. Chamamos-lhe rosácea, pois é assim que normalmente é designada. No entanto tal designação pode, ela própria, levantar problemas.

Rosácea é normalmente uma designação usada para falar do vão circular, aberto geralmente no alto da fachada principal e braços do transepto, quase sempre emoldurado e com enchimento de pedra e vitrais (1).

De forma circular, todos os seus raios convergem num centro. O seu simbolismo, visível sobretudo quando elas são decoradas com elementos figurativos, remete para a ideia de que todos os "caminhos" vão dar ao centro.

E o centro é o "Logos", gerador da unidade, ele próprio essa unidade. Com o cristianismo, as rosáceas, nas catedrais, publicitam o simbolismo da unidade da doutrina cristã.

Rose Windows are, to use the term popularized by C. G. Jung, 'mandalas' (2). Em sânscrito, este termo designava simplesmente círculo, hoje ele refere-se á associação de figuras geométricas com um centro comum.

O cristianismo, na expressão plástica que o românico e o gótico lhe conferem, utiliza o modelo simbólico da "mandala" para figurar o Cristo-Rei ou até o Cristo-Juíz.

Com base neste modelo iconográfico, podemos perceber as rosáceas que, rasgadas a Norte, a Sul ou a Oeste, nas catedrais, servem objectivos de interpretação e propaganda da doutrina cristã.

Esta "rosácea" que trago hoje, aqui, não é uma rosácea de nenhum vão de uma catedral.

Esta "rosácea", bela e intrigante, encontra-se no facial da cabeceira do túmulo do rei D. Pedro I de Portugal. Este simples facto pode levar-nos a dizer que esta "rosácea" não é uma rosácea.

Não reconhecemos nela o simbolismo das "mandalas". A composição é circular. Trata-se de círculos concêntricos, mas o centro parece desvalorizado. Não há ali nem urna representação figurativa central, nem o efeito irradiador dum centro para onde deveria convergir a organização do conjunto.

É certo, no entanto, que no círculo central vemos a cabeça de urna figura que, erguendo-se do círculo anterior se intromete neste espaço. Mas ela não se impõe como figura central da composição, por isso pensamos que estes círculos não têm urna organização irradiante.

Se não encontramos no modelo iconográfico da "mandala" a forma compositiva deste conjunto, onde é que vamos buscar o suporte formal e significativo deste trabalho?

Serafím Moralejo na comunicação que apresentou ao " IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval" que decorreu em Lisboa apontou para urna leitura desta composição, interpretando a "rosácea" interna como urna roda da Fortuna. Confirma-o, diz este professor da Universidade de Santiago de Compostela, la presencia de la diosa que ase su cubo para hacerla girar (3).

Temos, então, urna nova proposta de modelo iconográfico: esta que chamamos "rosácea" seria, pois, urna roda da Fortuna. Mas, em rigor, na leitura de S. Moralejo, dos dois círculos concêntricos com decoração figurativa, apenas o interior representaria a roda da fortuna. No círculo exterior mais do que a "fortuna" da vida humana, as cenas ah esculpidas remeteriam sobretudo para as idades do homem. Esta seria, portanto, urna roda das idades.

Estamos, então, perante vários modelos de explicação para urna composição rica de iconografia.

O facto de este trabalho escultórico aparecer no túmulo do rei D. Pedro I e de este rei ter sido um personagem que a história, mas sobretudo a lenda, deixou ligado aos seus amores com a castelhana Inês de Castro, levou a interpretar os vários quadros desta "rosácea" como sendo retratos de episódios do drama que envolveu esta tão famosa relação amorosa.

Todos conhecem, com certeza, a história dos amores deste rei, que ficou na Histórica com os cognomes de Cruel e, ao mesmo tempo, de Justiceiro, e daquela que depois de morta foi rainha.

Vieira da Natividade em 1910 no trabalho Ignez De Castro e Pedro o Cru Perante a Iconografia dos Seus Túmulos, propôs urna leitura das cenas desta "rosácea" á luz destes famosos e lendários amores e a sua versão tornou-se, então, quase a leitura institucional do que al¡ se representa.

A aceitar que os túmulos sejam um "cântico" aos amores destes que a Histórica não esquece, estaríamos confrontados com a hipótese de que o modelo proposto ao escultor teria sido o da descrição narrativa dos acontecimentos históricos da vida destes dois intervenientes.

Reynaldo dos Santos no artigo "A iconografia dos Túmulos de Alcobaça" publicado era 1924 na revista Lusitânia chama a atenção para o facto de urna descrição narrativa dos acontecimentos não se inserir no quadro das preocupações morais, filosóficas e religiosas (4) da Idade Média. Elas seriara verosímeis na Renascença (como sucedeu á sua versão literária) (5).

Estamos então perante um novo problema no que se refere á identificação do modelo iconográfico que possa servir de suporte a qualquer leitura. E este problema não é apenas académico ou formal, pois ele arrasta consigo a questão de saber quando é que este túmulo, ou melhor, esta "rosácea" foi feita.

Orientamos qualquer interpretação iconográfica no pressuposto que estamos perante urna "mandala", uma roda da Fortuna, urna roda das Idades, ou ainda urna descrição narrativa de episódios históricos, isso implica remeter a produção desta peca para um certo tempo, um certo espaço cultural.

Mas aceitaríamos com facilidade qualquer destes modelos, se nalgum deles encontrássemos coerência ou capacidade para explicarem a totalidade das diferentes cenas aqui representadas, o que não se verifica.


A "ROSÁCEA"

A composição tanto da "rosácea" exterior, como da interior, leva-nos a ver, do lado direito de quem olha para ela, a luta, o desespero e a morte e do lado esquerdo, a paz, a felicidade, a glória.

A alteração da base das composições das edículas do lado esquerdo era relação às do lado direito, serve esta noção de queda (lado direito) e de ascensão (lado esquerdo).

Tal composição sugere-nos o processo da vida humana, tanto no seu movimento de crescimento até á maturidade como no de declínio até á morte. As figuras das edículas do topo e da base dão-nos urna dimensão de estabilidade, enquanto todas as outras reflectem movimento. Na de topo vemos um personagem sentado, era posição majestática: é imagem da vida na sua pujança. A da base representa a morte. Aqui há mesmo urna inscrição, cuja leitura não é fácil, que diz: A:E:AFIN:DOMÜDO. De cada lado da "rosácea", duas figuras nuas remetem o nosso pensamento para as figuras de Adão e Eva.

Todo este quadro leva o espectador e interpretá-lo de imediato como urna representação das idades do homem e a sua "fortuna". Por estar no túmulo de D. Pedro, a identificação das várias cenas, que aqui vemos, com a sua vida, é tendência a que é difícil fugir.

Mas, quando começamos a analisar, edícula por edícula, as diferentes cenas, surgem sempre problemas que interrompem qualquer sequência descritiva.


A "ROSÁCEA" EXTERNA

Aceitando as versões mais comuns, apenas por razões de didactismo, vejamos os vários quadros:

1. A "infância": uma mãe amamentando um filho
ou
Inês de Castro com o seu primeiro filho.

2. A "puerícia": uma cena escolar
ou
D. Pedro, Inês de Castro e os três filhos.

3. A "adolescência": uma cena de jogo (de xadrez, provavelmente)
ou
D. Pedro e D. Inês, lendo.

4. A "adolescência": uma cena de amor. Temos aqui um primeiro problema, pois este quadro repetiria o tema do anterior, ou seja, temos duas edículas para a mesma idade.
Ou
D. Pedro e D. Inês era convívio amoroso.

5. A "juventude": um empurrão simbólico que contribui para a ascensão de D. Pedro.
ou
Cena de difícil explicação no quadro da vida do casal, que parece interromper a descrição histórica que se vinha fazendo.

6. A "juventude": monarca sentado era posição majestática.
ou
D. Afonso IV, pai de D. Pedro e responsável pela decisão de mandar matar Inês.

7. As cenas seguintes não encontrara explicação á luz da iconografia de uma roda da vida. O Prof. Moralejo integra, no entanto, a temática das idades na sua explicação. Concorda que nestas edículas se aborda o tema da execução de Inês, dizendo que estas cenas resultam da memória do rei D. Pedro, que, para descrever o tempo de declínio e queda até á morte, vai lembrar o drama da amada.
Na perspectiva de que se representa agora o drama da morte de Inês, esta cena mostra-a prostrada perante o seu algoz.

8. Agora os papéis dos intervenientes, a serem os mesmos do quadro anterior, parece terem-se invertido. Esta cena e aquela onde se vé um homem prostrado e uma mulher que, aparentemente, o empurra (n.° 5) parecem estragar a sequência narrativa de quem pretende ver aqui a história da vida de Pedro e Inês, pois ambas são de difícil compreensão.

9. Um personagem que de veste talar ou toga (6), como nos chama a atenção A. de Vasconcelos, domina "Inês" puxando-lhe os cabelos.
Quem poderá ser este personagem?
É a personalização dos do Conselho (7), diz este estudioso da problemática iconográfica dos túmulos, que nos deixou um longo estudo, marcado todo ele pela perspectiva historicista, ou seja, a de quem lé toda a iconografia deste túmulo, assim como do de D. Inês de Castro na certeza de que aqui se representa a história dos amores deste famoso par que encantou os românticos.

10. Nesta cena, "Inês" aparece já degolada. A cabeça aparece caída ao lado do corpo.
De facto, no Livro de Noa de Santa Cruz de Coimbra pode ler-se, a propósito do modo como D. Inês foi monta:

Era m. ccc. nonagesima tertia vii: dies lanuarii decolata fuit Doña Enes per mandatum domini Regis Alfonsis iiij (8).

11. A presente cena também não encontra explicação fácil. António José Saraiva coloca o problema da sua interpretação, á luz de uma leitura historicista destas cenas. Diz ele:

A seguir vemos um homem de barba longa agarrado por dois carrascos, um dos quais lhe enterra um punhal no peito. Podemos imaginar que é o castigo do assassino de Inês, a não ser que se trate da representação simbólica da dor que Pedro sofreu com a morte de Inês (9).

O personagem a quem é cravada uma adaga apresenta um semblante de don que pode sugerir, mais do que uma execução, o sofrimento de quem foi duramente atingido nos seus sentimentos.
O seu porte, e nomeadamente La cabellera e luenga barba acaracolada del personaje lo aproximan de hecho a otras efigies del monarca en el mismo conjunto (10), esclarece Serafím Moralejo.

12. A cena que encerra esta "rosácea" mostra-nos um homem deitado, de barba e envolto num manto que lhe cobre também a cabeça. Ou talvez não seja o manto que lhe cobre a cabeça, mas sim um capuz.
A leitura historicista identifica este personagem com D. Pedro e a inscrição A:E:AFIN:DOMÜDO que se pode len por debaixo do coro tem-se prestado a leituras, das quais a mais romântica é a que diz que ela significaria "Aqui Espero o Fim do Mundo". É uma leitura que não podemos aceitar por não poder sustentar-se á luz da epigrafia ou da paleografia, mas ela é sintomática do sentido que se quer dar a esta peca: um cântico idealizado dos amores apaixonados deste casal que levou o reí a ter de mandar matar a amante. A D. Pedro só restaria esperar o fim dos tempos para poder reencontrar de novo a amada.

A:E:AFIN:DOMUDO poderá ler-se, como já foi feito, nomeadamente por Reinaldo dos Santos, como significando "O principio (A = alfa) E O Fim do Mundo". Tal leitura reforçaria a perspectiva de quem vé nesta obra uma representação da Roda da Fortuna.


A "ROSÁCEA" INTERNA

As edículas do círculo interno remetem para cenas que colocam o mesmo tipo de problemas dos agora levantados.

Elas são apenas em número de 6 e se as duas primeiras (as do lado esquerdo) facilmente se compreenden como sendo a represntação figurativa de cenas da vida do casal Pedro e Inês, as do lado oposto levantam dificuldades interpretativas.

No que se refere á identificação dos personagens, surgem agora diferenças de opinião. Concorda-se que é Inês e Pedro quem aparece nas ediculas do lado esquerdo e na do topo, mas no que diz respeito aos dois quadros do lado direito, já as interpretações diferem.

Serafím Moralejo para quem esta "rosácea" deve ser interpretada enquanto lenguaje alusivo y simbólico (11), não concorda coro os que véem aqui a representação de um hipotético episódio histórico: o pai de D. Pedro apontando com o indicador da mão esquerda o caminho do exílio a Inês (12). Diz este investigador que Inês está a abandonar o banco onde estava sentada, porque la rueda gira (13). Trata-se do principio da desventura da vida.

A cena seguinte levanta-nos também grandes interrogações. António José Saraiva prefere concluir que aqui se véem dois corpos em movimento, numa atitude indecifrável (14). Mas algumas interpretações foram propostas:

Ignez vergada pela dbr, numa ancia suprema, implora, braços ao ceu, perdao a  Affonso IV (15), diz htatividade, e o rei, commovido pelas lagrimas e formosura de tào linda mulher volta-se numa dor sincera e grande (16).

A. Vasconcelos conclui que tendo D. Inês comunicado a D, Pedro que iria ter de partir para o desterro, este recebida de chofre a noticia, aperta a cabeça com as mãos, e, cheio de dór e desespéro, atira-se debruços para cima de qualquer apoio (17).

Moralejo diz tratar-se de D. Pedro e compara a semelhança do gesto de cobrir o rosto com as mãos com a da cena da edícula seguinte. Retratar-se-ia aqui o fim da fortuna do casal.

A interpretação da última cena desta série, talvez porque incluí, para além de dois corpos deitados um sobre o nutro, ama figura que não se assemelha a qualquer forma que os olhos identifiquem, mereceu leituras bastante diversificadas:

é a alma de D. Pedro elevando-se para o Paraíso por sobre o sea cadáver, diz António José Saraiva (18).

Vieira Natividade diz o seguinte: Sobre os dois corpos, a carranca clássica das fontes, e sobre esta a estatua da Dór, Gravando as garras no pescoço e hombro de D. Pedro (19).

A.Vasconcelos diz que se trata de um monstro horrendo, de grande e hirsuta cabeça, na parte inferior e que acima deste vemos a alma de D. Constança (20).

Serafím Moralejo dá-nos ama interpretação mais elaborada: La figura se nos presenta así como un híbrido: humana e incluso bella de frente y de medio cuerpo para arriba; animal o demoníaca de espaldas y de medio cuerpo para abajo. Su mitad humana mira hacia arriba, hacia las escenas que muestran la felicidad de los amantes; su mitad monstruosa los sume en la desgracia (21).

Tal diversidade de leituras dá-nos coma do modo como os vários intérpretes desta obra fizeram os seas comentários, condicionados por um determinado modelo iconográfico, mesuro quando ele parece inexistente.


A AUTORIA DESTE TRABALHO

Dizia, no inicio, que a aceitação de um modelo interpretativo pressupõe, antes de mais, a aceitação de que a obra em estado é um produto cultural e artístico de aura dada circunstância epocal.

Nesse sentido importa perguntar: quem foram os mentores desta obra? Ou até mesuro: quando é que esta peça foi feita?

Não se tem posto a questão de que ela possa não ter sido feita no século XIV, nem tão pouco que o seu programa iconográfico não tenha sido da responsabilidade daquele que irá repousar neste sarcófago. Hoje, no entanto, o problema levanta-se.

A iconografia poderá, com certeza, constituir-se em laboratório precioso para a procura de respostas às questões levantadas.

A comunicação do Prof. Moralejo sobre esta peça teve o grande mérito de, a meu ver, pela primeira vez, estudar iconograficamente este trabalho escultórico. Ele não fez mais um romance sobre a iconografia da "rosácea" do túmulo de D. Pedro, mas comparou registos e símbolos, estabeleceu paralelos.

Pensamos que este investigador apontou um caminho que há que prosseguir, o que significa pegar nos elementos iconográficos que aqui se representam e para além de os identificar, comparando-os com outras representações, perguntar se eles constituíam material conhecido ou utilizado ao tempo em que se afirma que estes túmulos foram feitos.

Esta exigência, que coloco em relação ao trabalho de análise iconográfica desta "rosácea", é-me ditada pela "certeza" de que este túmulo, onde esta peça surge, tal como o de D. Inês de Castro, são produto de várias mãos e de vários tempos. Por agora esta "certeza" não passa de uma intuição, que espero que a investigação futura venha a confirmar.

O problema poderá colocar-se do seguinte modo:

não se conhece trabalho semelhante em Portugal;

tem-se procurado encontrar afinidades para esta peça e alguns autores apontam, sobretudo, para influências francesas;

Moralejo estabelece um paralelo com temas que teriam tido a sua origem na Inglaterra (La rueda de la vida que se incluye en el Salterio de Robert de Lisle, de comienzos del siglo XIV, nos ofrece coincidencias más que notables con la alcobacense, como para concluir que ésta sea también una "rota aetatum" (22));

alguns outros elementos, como seja a localizaoção dos escudos, nacionais e da família Castro, nos túmulos de D. Pedro e de D. Inês, levaram estudiosos da arte a ver aqui semelhanças com túmulos da Catalunha.

Terá todo o programa iconográfico destes túmulos saído da imaginação do rei D. Pedro?

Há quem sustente tal opinião, até porque não encontramos paralelo, na iconografia da época, para algumas cenas desta "rosácea", e das quais já falámos, bem como outras dos faciais da arca.

Por exemplo: as várias edículas dos dois faciais deste túmulo representam cenas da vida de S. Bartolomeu, mas não encontramos nas histórias da vida do santo, a narrativa de alguns episódios que, aqui, aparecem representados. O mais espectacular é o do apóstolo, depois de
morto, ter aparecido diante do responsável pelo seu martírio com a pele aos ombros.

Todos os exercícios interpretativos até agora ensaiados não são capazes de justificar esta composição.

Que conclusão poderemos nós propor?

Mesmo os que pensam que este trabalho é a representação simbólica da roda da vida e que o artista não estaria condicionado a descrever episódios concretos que pudessem ser situados no espaço e no tempo, não excluem que aqui se recorre a apontamentos biográficos de Pedro e Inês para compor este texto onde as imagens são as palavras.

Perguntamos, então, que relação de fidelidade é que existirá entre estas imagens e a vida dos personagens em causa.
-Será esta obra, uma representação fiel dos acontecimentos, os quais nós não conhecemos? Note-se que o relato destes episódios é-nos feito mais de um século após o sucedido (23).
-Será que se trata de uma representação temática que se aproxima dos factos históricos dando-lhe, no entanto, uma versão interpretativa própria?


A LINGUAGEM ICONOGRÁFICA

Analisemos neste "texto" (a "rosácea") o seu vocabulário e a sua sintaxe.

A linguagem iconográfica, como qualquer nutra linguagem, não nasce espontaneamente. O seu vocabulário tem raizes próprias e a sua sintaxe identifica-se com uma certa construção.

Do vocabulário aqui presente não é fácil atribuir-lhe uma nacionalidade. Por exemplo:
-Edícula 1: identificar o objecto que está á esquerda da mulher sentada como o tanque de uma fonte, a que um cano mutilado conduziria água (24) é dar-lhe nacionalidade portuguesa; reconhecer ali un pote puesto al fuego (25), por comparação com o saltério inglês de Robert de Lisle é considerar que o artista dominaria nutra linguagem, ou que, pelo menos, era conhecedor dela.

Questões relativas á sintaxe poderiam também ser levantadas:
- Divide-se o círculo externo em 12 edículas o e interno em 6. Porquê? Esta "sintaxe" parece contrariar o "vocabulário", pois obriga-o a torna-se redundante. Vejamos: se procuramos identificar cada edícula como relativa ás idades do homem sobra sempre uma e quando prosseguimos o intento de reconhecer netas a descrição da vida e drama de Inês há também sempre uma a mais. (Veja-se o que foi dito, por exemplo, em relação à edícula n.° 5 e á n.° 7 da "rosácea" externa).

A leitura iconográfica desta "rosácea" obriga também á comparação dos elementos aquí representados com outros semelhantes que aparecem neste mesuro túmulo. Este é um trabalho que me proponho levar por diante, orientado pela hipótese de que as dificuldades que hoje temos para interpretar esta peça, poderiam ter sido também as dificuldades de quem a executou. Digo isto na medida em que se se vier a verificar que esta obra é posterior ao século XIV, nutras e diferentes serão as referências a procurar.

Um estudo de análise "interna" deste documento, ou seja, comparar vocabulário e sintaxe utilizados nos diferentes faciais e até edículas do túmulo fornecer-nos-á, estou certo, elementos para caracterizarmos esta linguagem iconográfica aqui usada, de modo a conferir-lhe identidade e a identificar o tempo em que era usada.

Termino dizendo que esta peça, bela e intrigante, chama a atenção de qualquer turista que aprecia o túmulo do rei D. Pedro I. Ela é, sem dúvida, uma pega de excelente primor técnico, onde o primor da escultura se alia aos cuidados postos na composição dos diferentes quadros. Nenhum interessado pela arte ou pelo património poderia deixar de se referir a ela. É de estranhar que poucos se tenham deixado atrair por este trabalho: são poucos os cronistas que a referem e, quando o fazem, quase que se limitam a dizer que está ah uma "roda"; Os viajantes, que nos séculos passados por ali passaram, pouca atenção dedicaram não só a esta "rosácea", como aos túmulos, limitando-se, praticamente, a dizer que são um belo e exímio trabalho.

A dificuldade que encontramos em identificar a linguagem iconográfica desta "rosácea"; a dificuldade que sentimos em reconhecer o rigor do simbolismo medieval, onde o conteúdo da expressão nunca é ditado pelo acaso, leva-nos até a pensar que ela possa ser filha de um tempo mais preocupado com o aspecto formal da beleza artística do que com a coerência de um discurso.


NOTAS

(1) Luis Manuel Teixeira, Dicionário Ilustrado de Belas-Artes, Lisboa, Editorial Presença, 1985, p. 202.

(2) Painton Cowen, Rose Windows, London, Thames and Hudson Ltd. (1979), 1910, p. 10.

(3) Serafim Moralejo, "El "Texto" Alcobacense sobre los Amores de D. Pedro y D.ª Inês", Actas do Congresso da Associação Hispánica da Literatura Medieval, vol. I, Lisboa, Ediçoes Cosmos, 1991, p. 84.

(4) Reynaldo dos Santos, "A iconografia dos Túmulos de Alcobaça", Lusitânia, fascículo 1, Lisboa, Janeiro de 1924, p. 87.

(5) Ibidem, p. 87.

(6) António de Vasconcelos, Inês de Castro - Estudos para uma Série de Lições no Curso de História de Portugal, 2.ª edição revista, Barcelos, Portucalense Editora, Lda., 1933, p. 94.

(7) A. Vasconcelos, Idem, p. 94.

(8) Livro de Noa de Santa Cruz de Coimbra, in A. Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa Real Portugueza (1744), vo. I, p. 382, apud Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de Castro - Um Tema para a Europa, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 15.

(9)António José Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média, Lisboa, Gradiva, 1988, p. 53.

(10) Moralejo, Idem, p. 83.

(11) Moralejo, Idem, p. 84.

(12) A. Vasconcelos, Idem, p. 91.

(13) Moralejo, Idem, p. 84.

(14) Antonio José Saraiva, Idem, p. 53.

(15) M. Vieira Natívidade, Ignez De Castro e Pedro O Cru Perante a Iconografía dos Seus Túmulos, Lisboa, Clichés de António Natividade, 1910, pp. 73 e 75.

(16) Natividade, Idem, p. 75.

(17) A. Vasconcelos, Idem, p. 92.

(18) António José Saraiva, Idem, p. 52.

(19) V. Natividade, Idem, pp. 75 e 77.

(20) A. Vasconcelos, Idem, p. 92.
D. Constança foi a segunda mulher do rei D. Pedro I. Antes ele tinha sido casado com a infanta D. Branca de Castela, mas por esta ser doente e pouco "assisada", o infante repudiou-a. Quanto ao casamento com D. Inês de Castro, não é fácil concluir se ele se terá ou não realizado.

(21) Moralejo, Idem, p. 85.

(22) Serafín Moralejo, Idem, p. 73.

(23) Refiro-me à obra de Garcia de Resende (1516 é a data da edição do "Cancioneiro Geral") por ser o texto literário mais amigo que conta estes episódios. Haverá outros textos tradicionais, castelhanos e um português, que foram registados no séc. XVI, mas que poderão ser anteriores a Garcia de Resende.

(24) V. Natividade, Idem, p. 63.

(25) Serafín Moralejo, Idem, p. 73.


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