A PROCURA DE UM MODELO
ICONOGRÁFICO
O título desta minha comunicação é A "rosácea"
do túmulo do rei D. Pedro I de Portugal. Chamamos-lhe rosácea,
pois é assim que normalmente é designada. No entanto tal designação
pode, ela própria, levantar problemas.
Rosácea é normalmente uma designação usada para
falar do vão circular, aberto geralmente no alto da fachada
principal e braços do transepto, quase sempre emoldurado e com
enchimento de pedra e vitrais (1).
De forma circular, todos os seus raios convergem
num centro. O seu simbolismo, visível sobretudo quando elas são
decoradas com elementos figurativos, remete para a ideia de que
todos os "caminhos" vão dar ao centro.
E o centro é o "Logos", gerador da unidade, ele
próprio essa unidade. Com o cristianismo, as rosáceas, nas
catedrais, publicitam o simbolismo da unidade da doutrina cristã.
Rose Windows are, to use the term popularized
by C. G. Jung, 'mandalas' (2). Em sânscrito, este termo
designava simplesmente círculo, hoje ele refere-se á associação de
figuras geométricas com um centro comum.
O cristianismo, na expressão plástica que o
românico e o gótico lhe conferem, utiliza o modelo simbólico da
"mandala" para figurar o Cristo-Rei ou até o Cristo-Juíz.
Com base neste modelo iconográfico, podemos
perceber as rosáceas que, rasgadas a Norte, a Sul ou a Oeste, nas
catedrais, servem objectivos de interpretação e propaganda da
doutrina cristã.
Esta "rosácea" que trago hoje, aqui, não é uma
rosácea de nenhum vão de uma catedral.
Esta "rosácea", bela e intrigante, encontra-se no
facial da cabeceira do túmulo do rei D. Pedro I de Portugal. Este
simples facto pode levar-nos a dizer que esta "rosácea"
não é uma
rosácea.
Não reconhecemos nela o simbolismo das "mandalas".
A composição é circular. Trata-se de círculos concêntricos, mas o
centro parece desvalorizado. Não há ali nem urna representação
figurativa central, nem o efeito irradiador dum centro para onde
deveria convergir a organização do conjunto.
É certo, no entanto, que no círculo central vemos
a cabeça de urna figura que, erguendo-se do círculo anterior se
intromete neste espaço. Mas ela não se impõe como figura central da
composição, por isso pensamos que estes círculos não têm urna
organização irradiante.
Se não encontramos no modelo iconográfico da
"mandala" a forma compositiva deste conjunto, onde é que vamos
buscar o suporte formal e significativo deste trabalho?
Serafím Moralejo na comunicação que apresentou ao
" IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval" que
decorreu em Lisboa apontou para urna leitura desta composição,
interpretando a "rosácea" interna como urna roda da Fortuna.
Confirma-o, diz este professor da Universidade de Santiago de
Compostela, la presencia de la diosa que ase su cubo para hacerla
girar (3).
Temos, então, urna nova proposta de modelo
iconográfico: esta que chamamos "rosácea" seria, pois, urna roda da
Fortuna. Mas, em rigor, na leitura de S. Moralejo, dos dois círculos
concêntricos com decoração figurativa, apenas o interior
representaria a roda da fortuna. No círculo exterior mais do que a
"fortuna" da vida humana, as cenas ah esculpidas remeteriam
sobretudo para as idades do homem. Esta seria, portanto, urna
roda das idades.
Estamos, então, perante vários modelos de
explicação para urna composição rica de iconografia.
O facto de este trabalho escultórico aparecer no
túmulo do rei D. Pedro I e de este rei ter sido um personagem que a
história, mas sobretudo a lenda, deixou ligado aos seus amores com a
castelhana Inês de Castro, levou a interpretar os vários quadros
desta "rosácea" como sendo retratos de episódios do drama que
envolveu esta tão famosa relação amorosa.
Todos conhecem, com certeza, a história dos amores
deste rei, que ficou na Histórica com os cognomes de Cruel e,
ao mesmo tempo, de Justiceiro, e daquela que depois de morta foi
rainha.
Vieira da Natividade em 1910 no trabalho Ignez
De Castro e Pedro o Cru Perante a Iconografia dos Seus Túmulos,
propôs urna leitura das cenas desta "rosácea" á luz destes famosos e
lendários amores e a sua versão tornou-se, então, quase a leitura
institucional do que al¡ se representa.
A aceitar que os túmulos sejam um "cântico" aos
amores destes que a Histórica não esquece, estaríamos confrontados
com a hipótese de que o modelo proposto ao escultor teria sido o da
descrição narrativa dos acontecimentos históricos da vida destes
dois intervenientes.
Reynaldo dos Santos no artigo "A iconografia dos
Túmulos de Alcobaça" publicado era 1924 na revista Lusitânia
chama a atenção para o facto de urna descrição narrativa dos
acontecimentos não se inserir no quadro das preocupações morais,
filosóficas e religiosas (4) da Idade Média. Elas seriara
verosímeis na Renascença (como sucedeu á sua versão literária)
(5).
Estamos então perante um novo problema no que se
refere á identificação do modelo iconográfico que possa servir de
suporte a qualquer leitura. E este problema não é apenas académico
ou formal, pois ele arrasta consigo a questão de saber quando é que
este túmulo, ou melhor, esta "rosácea" foi feita.
Orientamos qualquer interpretação iconográfica no
pressuposto que estamos perante urna "mandala", uma roda
da Fortuna, urna roda das Idades, ou ainda urna descrição
narrativa de episódios históricos, isso implica remeter a
produção desta peca para um certo tempo, um certo espaço cultural.
Mas aceitaríamos com facilidade qualquer destes
modelos, se nalgum deles encontrássemos coerência ou capacidade para
explicarem a totalidade das diferentes cenas aqui representadas, o
que não se verifica.
A "ROSÁCEA"
A composição tanto da "rosácea" exterior, como da
interior, leva-nos a ver, do lado direito de quem olha para ela, a
luta, o desespero e a morte e do lado esquerdo, a paz, a felicidade,
a glória.
A alteração da base das composições das edículas
do lado esquerdo era relação às do lado direito, serve esta noção de
queda (lado direito) e de ascensão (lado esquerdo).
Tal composição sugere-nos o processo da vida
humana, tanto no seu movimento de crescimento até á maturidade como
no de declínio até á morte. As figuras das edículas do topo e da
base dão-nos urna dimensão de estabilidade, enquanto todas as outras
reflectem movimento. Na de topo vemos um personagem sentado, era
posição majestática: é imagem da vida na sua pujança. A da base
representa a morte. Aqui há mesmo urna inscrição, cuja leitura não é
fácil, que diz: A:E:AFIN:DOMÜDO. De cada lado da "rosácea",
duas figuras nuas remetem o nosso pensamento para as figuras de Adão
e Eva.
Todo este quadro leva o espectador e interpretá-lo
de imediato como urna representação das idades do homem e a sua
"fortuna". Por estar no túmulo de D. Pedro, a
identificação das
várias cenas, que aqui vemos, com a sua vida, é tendência a que é
difícil fugir.
Mas, quando começamos a analisar, edícula por
edícula, as diferentes cenas, surgem sempre problemas que
interrompem qualquer sequência descritiva.
A "ROSÁCEA" EXTERNA
Aceitando as versões mais comuns, apenas por razões de didactismo,
vejamos os vários quadros:
1. A "infância": uma mãe amamentando um filho
ou
Inês de Castro com o seu primeiro filho.
2. A "puerícia": uma cena escolar
ou
D. Pedro, Inês de Castro e os três filhos.
3. A "adolescência": uma cena de jogo (de xadrez, provavelmente)
ou
D. Pedro e D. Inês, lendo.
4. A "adolescência": uma cena de amor. Temos aqui
um primeiro problema, pois este quadro repetiria o tema do anterior,
ou seja, temos duas edículas para a mesma idade.
Ou
D. Pedro e D. Inês era convívio amoroso.
5. A "juventude": um empurrão simbólico que contribui para a
ascensão de D. Pedro.
ou
Cena de difícil explicação no quadro da vida do casal, que parece
interromper a descrição histórica que se vinha fazendo.
6. A "juventude": monarca sentado era posição majestática.
ou
D. Afonso IV, pai de D. Pedro e responsável pela decisão de mandar
matar Inês.
7. As cenas seguintes não encontrara explicação á luz da iconografia
de uma roda da vida. O Prof. Moralejo integra, no entanto, a
temática das idades na sua explicação. Concorda que nestas edículas
se aborda o tema da execução de Inês, dizendo que estas cenas
resultam da memória do rei D. Pedro, que, para descrever o
tempo de declínio e queda até á morte, vai lembrar o drama da amada.
Na perspectiva de que se representa agora o drama da morte de Inês,
esta cena mostra-a prostrada perante o seu algoz.
8. Agora os papéis dos intervenientes, a serem os mesmos do quadro
anterior, parece terem-se invertido. Esta cena e aquela onde se vé
um homem prostrado e uma mulher que, aparentemente, o empurra (n.°
5) parecem estragar a sequência narrativa de quem pretende ver aqui
a história da vida de Pedro e Inês, pois ambas são de difícil
compreensão.
9. Um personagem que de veste talar ou toga
(6), como nos chama a atenção A. de Vasconcelos, domina "Inês"
puxando-lhe os cabelos.
Quem poderá ser este personagem?
É a personalização dos do Conselho (7), diz este estudioso da
problemática iconográfica dos túmulos, que nos deixou um longo
estudo, marcado todo ele pela perspectiva historicista, ou seja, a
de quem lé toda a iconografia deste túmulo, assim como do de D. Inês
de Castro na certeza de que aqui se representa a história dos amores
deste famoso par que encantou os românticos.
10. Nesta cena, "Inês" aparece já degolada. A
cabeça aparece caída ao lado do corpo.
De facto, no Livro de Noa de Santa Cruz de Coimbra pode ler-se, a
propósito do modo como D. Inês foi monta:
Era m. ccc. nonagesima tertia vii: dies lanuarii decolata fuit
Doña Enes per
mandatum domini Regis Alfonsis iiij (8).
11. A presente cena também não encontra explicação
fácil. António José Saraiva coloca o problema da sua interpretação,
á luz de uma leitura historicista destas cenas. Diz ele:
A seguir vemos um homem de barba longa agarrado por dois
carrascos, um dos
quais lhe enterra um punhal no peito. Podemos imaginar que é o
castigo do
assassino de Inês, a não ser que se trate da representação simbólica
da dor que
Pedro sofreu com a morte de Inês (9).
O personagem a quem é cravada uma adaga apresenta
um semblante de don que pode sugerir, mais do que uma execução, o
sofrimento de quem foi duramente atingido nos seus sentimentos.
O seu porte, e nomeadamente La cabellera e luenga barba
acaracolada del personaje lo aproximan de hecho a otras efigies del
monarca en el mismo conjunto (10), esclarece Serafím Moralejo.
12. A cena que encerra esta "rosácea" mostra-nos
um homem deitado, de barba e envolto num manto que lhe cobre também
a cabeça. Ou talvez não seja o manto que lhe cobre a cabeça, mas sim
um capuz.
A leitura historicista identifica este personagem com D. Pedro e a
inscrição A:E:AFIN:DOMÜDO que se pode len por debaixo do
coro tem-se prestado a leituras, das quais a mais romântica é a que
diz que ela significaria "Aqui Espero o Fim do Mundo". É uma leitura
que não podemos aceitar por não poder sustentar-se á luz da
epigrafia ou da paleografia, mas ela é sintomática do sentido que se
quer dar a esta peca: um cântico idealizado dos amores apaixonados
deste casal que levou o reí a ter de mandar matar a amante. A D.
Pedro só restaria esperar o fim dos tempos para poder reencontrar de
novo a amada.
A:E:AFIN:DOMUDO poderá ler-se, como já foi feito,
nomeadamente por Reinaldo dos Santos, como significando "O principio
(A = alfa) E O Fim do Mundo". Tal leitura reforçaria a perspectiva
de quem vé nesta obra uma representação da Roda da Fortuna.
A "ROSÁCEA" INTERNA
As edículas do círculo interno remetem para cenas
que colocam o mesmo tipo de problemas dos agora levantados.
Elas são apenas em número de 6 e se as duas
primeiras (as do lado esquerdo) facilmente se compreenden como sendo
a represntação figurativa de cenas da vida do casal Pedro e Inês, as
do lado oposto levantam dificuldades interpretativas.
No que se refere á identificação dos personagens,
surgem agora diferenças de opinião. Concorda-se que é Inês e Pedro
quem aparece nas ediculas do lado esquerdo e na do topo, mas no que
diz respeito aos dois quadros do lado direito, já as interpretações
diferem.
Serafím Moralejo para quem esta "rosácea" deve ser
interpretada enquanto lenguaje alusivo y simbólico (11), não
concorda coro os que véem aqui a representação de um hipotético
episódio histórico: o pai de D. Pedro apontando com o indicador
da mão esquerda o caminho do exílio a Inês (12). Diz este
investigador que Inês está a abandonar o banco onde estava sentada,
porque la rueda gira (13). Trata-se do principio da
desventura da vida.
A cena seguinte levanta-nos também grandes
interrogações. António José Saraiva prefere concluir que aqui se
véem dois corpos em movimento, numa atitude indecifrável
(14). Mas algumas interpretações foram propostas:
Ignez vergada pela dbr, numa ancia suprema, implora, braços ao
ceu, perdao a
Affonso IV (15), diz htatividade, e o rei,
commovido pelas lagrimas e formosura de
tào linda mulher volta-se numa dor sincera e grande
(16).
A. Vasconcelos conclui que tendo D. Inês comunicado a D, Pedro
que iria ter
de partir para o desterro, este recebida de chofre a noticia,
aperta a cabeça com
as mãos, e, cheio de dór e desespéro, atira-se debruços para cima de
qualquer
apoio (17).
Moralejo diz tratar-se de D. Pedro e compara a semelhança do
gesto de cobrir o rosto com as mãos com a da cena da edícula seguinte.
Retratar-se-ia aqui o fim da fortuna do casal.
A interpretação da última cena desta série, talvez
porque incluí, para além de dois corpos deitados um sobre o nutro,
ama figura que não se assemelha a qualquer forma que os olhos
identifiquem, mereceu leituras bastante diversificadas:
é a alma de D. Pedro elevando-se para o Paraíso por sobre o
sea cadáver, diz
António José Saraiva (18).
Vieira Natividade diz o seguinte: Sobre os dois corpos, a
carranca clássica das
fontes, e sobre esta a estatua da Dór, Gravando as garras no pescoço
e hombro
de D. Pedro (19).
A.Vasconcelos diz que se trata de um monstro horrendo, de
grande e hirsuta
cabeça, na parte inferior e que acima deste vemos a alma de
D. Constança (20).
Serafím Moralejo dá-nos ama interpretação mais elaborada: La
figura se nos
presenta así como un híbrido: humana e incluso bella de frente y de
medio cuerpo para arriba; animal o demoníaca de espaldas y de medio cuerpo
para abajo.
Su mitad humana mira hacia arriba, hacia las escenas que muestran la
felicidad de los amantes; su mitad monstruosa los sume en la desgracia
(21).
Tal diversidade de leituras dá-nos coma do modo
como os vários intérpretes desta obra fizeram os seas comentários,
condicionados por um determinado modelo iconográfico, mesuro quando
ele parece inexistente.
A AUTORIA DESTE TRABALHO
Dizia, no inicio, que a aceitação de um modelo
interpretativo pressupõe, antes de mais, a aceitação de que a obra
em estado é um produto cultural e artístico de aura dada
circunstância epocal.
Nesse sentido importa perguntar: quem foram os
mentores desta obra? Ou até mesuro: quando é que esta peça foi
feita?
Não se tem posto a questão de que ela possa não
ter sido feita no século XIV, nem tão pouco que o seu programa
iconográfico não tenha sido da responsabilidade daquele que irá
repousar neste sarcófago. Hoje, no entanto, o problema levanta-se.
A iconografia poderá, com certeza, constituir-se
em laboratório precioso para a procura de respostas às questões
levantadas.
A comunicação do Prof. Moralejo sobre esta peça
teve o grande mérito de, a meu ver, pela primeira vez, estudar
iconograficamente este trabalho escultórico. Ele não fez mais um
romance sobre a iconografia da "rosácea" do túmulo de D. Pedro, mas
comparou registos e símbolos, estabeleceu paralelos.
Pensamos que este investigador apontou um caminho
que há que prosseguir, o que significa pegar nos elementos
iconográficos que aqui se representam e para além de os identificar,
comparando-os com outras representações, perguntar se eles
constituíam material conhecido ou utilizado ao tempo em que se
afirma que estes túmulos foram feitos.
Esta exigência, que coloco em relação ao trabalho
de análise iconográfica desta "rosácea", é-me ditada pela "certeza"
de que este túmulo, onde esta peça surge, tal como o de D. Inês de
Castro, são produto de várias mãos e de vários tempos. Por agora
esta "certeza" não passa de uma intuição, que espero que a
investigação futura venha a confirmar.
O problema poderá colocar-se do seguinte modo:
não se conhece trabalho semelhante em Portugal;
tem-se procurado encontrar afinidades para esta peça e alguns
autores apontam, sobretudo, para influências francesas;
Moralejo estabelece um paralelo com temas que teriam tido a sua
origem na
Inglaterra (La rueda de la vida que se incluye en el Salterio de
Robert de Lisle,
de comienzos del siglo XIV, nos ofrece coincidencias más que
notables con la alcobacense, como para concluir que ésta sea también una "rota
aetatum" (22));
alguns outros elementos, como seja a localizaoção dos escudos,
nacionais e da
família Castro, nos túmulos de D. Pedro e de D. Inês, levaram
estudiosos da
arte a ver aqui semelhanças com túmulos da Catalunha.
Terá todo o programa iconográfico destes túmulos
saído da imaginação do rei D. Pedro?
Há quem sustente tal opinião, até porque não
encontramos paralelo, na iconografia da época, para algumas cenas
desta "rosácea", e das quais já falámos, bem como outras dos faciais
da arca.
Por exemplo: as várias edículas dos dois faciais
deste túmulo representam cenas da vida de S. Bartolomeu, mas não
encontramos nas histórias da vida do santo, a narrativa de alguns
episódios que, aqui, aparecem representados. O mais espectacular é o
do apóstolo, depois de
morto, ter aparecido diante do responsável pelo seu martírio com a
pele aos ombros.
Todos os exercícios interpretativos até agora
ensaiados não são capazes de justificar esta composição.
Que conclusão poderemos nós propor?
Mesmo os que pensam que este trabalho é a
representação simbólica da roda da vida e que o artista não estaria
condicionado a descrever episódios concretos que pudessem ser
situados no espaço e no tempo, não excluem que aqui se recorre a
apontamentos biográficos de Pedro e Inês para compor este texto onde
as imagens são as palavras.
Perguntamos, então, que relação de fidelidade é
que existirá entre estas imagens e a vida dos personagens em causa.
-Será esta obra, uma representação fiel dos acontecimentos, os quais
nós não conhecemos? Note-se que o relato destes episódios é-nos
feito mais de um século após o sucedido (23).
-Será que se trata de uma representação temática que se aproxima dos
factos históricos dando-lhe, no entanto, uma versão interpretativa
própria?
A LINGUAGEM ICONOGRÁFICA
Analisemos neste "texto" (a "rosácea") o seu
vocabulário e a sua sintaxe.
A linguagem iconográfica, como qualquer nutra
linguagem, não nasce espontaneamente. O seu vocabulário tem raizes
próprias e a sua sintaxe identifica-se com uma certa construção.
Do vocabulário aqui presente não é fácil
atribuir-lhe uma nacionalidade. Por exemplo:
-Edícula 1: identificar o objecto que está á esquerda da mulher
sentada como o tanque de uma fonte, a que um cano mutilado
conduziria água (24) é dar-lhe nacionalidade portuguesa;
reconhecer ali un pote puesto al fuego (25), por comparação
com o saltério inglês de Robert de Lisle é considerar que o artista
dominaria nutra linguagem, ou que, pelo menos, era conhecedor dela.
Questões relativas á sintaxe poderiam também ser
levantadas:
- Divide-se o círculo externo em 12 edículas o e interno em 6.
Porquê? Esta "sintaxe" parece contrariar o "vocabulário", pois
obriga-o a torna-se redundante. Vejamos: se procuramos identificar
cada edícula como relativa ás idades do homem sobra sempre uma e
quando prosseguimos o intento de reconhecer netas a descrição da
vida e drama de Inês há também sempre uma a mais. (Veja-se o que foi
dito, por exemplo, em relação à edícula n.° 5 e á n.° 7 da "rosácea"
externa).
A leitura iconográfica desta "rosácea" obriga
também á comparação dos elementos aquí representados com outros
semelhantes que aparecem neste mesuro túmulo. Este é um trabalho que
me proponho levar por diante, orientado pela hipótese de que as
dificuldades que hoje temos para interpretar esta peça, poderiam ter
sido também as dificuldades de quem a executou. Digo isto na medida
em que se se vier a verificar que esta obra é posterior ao século
XIV, nutras e diferentes serão as referências a procurar.
Um estudo de análise "interna" deste documento, ou
seja, comparar vocabulário e sintaxe utilizados nos diferentes
faciais e até edículas do túmulo fornecer-nos-á, estou certo,
elementos para caracterizarmos esta linguagem iconográfica aqui
usada, de modo a conferir-lhe identidade e a identificar o tempo em
que era usada.
Termino dizendo que esta peça, bela e intrigante,
chama a atenção de qualquer turista que aprecia o túmulo do rei D.
Pedro I. Ela é, sem dúvida, uma pega de excelente primor técnico,
onde o primor da escultura se alia aos cuidados postos na composição
dos diferentes quadros. Nenhum interessado pela arte ou pelo
património poderia deixar de se referir a ela. É de estranhar que
poucos se tenham deixado atrair por este trabalho: são poucos os
cronistas que a referem e, quando o fazem, quase que se limitam a
dizer que está ah uma "roda"; Os viajantes, que nos séculos passados
por ali passaram, pouca atenção dedicaram não só a esta "rosácea",
como aos túmulos, limitando-se, praticamente, a dizer que são um
belo e exímio trabalho.
A dificuldade que encontramos em identificar a
linguagem iconográfica desta "rosácea"; a dificuldade que sentimos
em reconhecer o rigor do simbolismo medieval, onde o conteúdo da
expressão nunca é ditado pelo acaso, leva-nos até a pensar que ela
possa ser filha de um tempo mais preocupado com o aspecto formal da
beleza artística do que com a coerência de um discurso.
NOTAS
(1) Luis Manuel Teixeira, Dicionário Ilustrado de Belas-Artes,
Lisboa, Editorial Presença, 1985, p. 202.
(2) Painton Cowen, Rose Windows, London, Thames and Hudson
Ltd. (1979), 1910, p. 10.
(3) Serafim Moralejo, "El "Texto" Alcobacense sobre los Amores de
D. Pedro y D.ª Inês", Actas do Congresso da Associação Hispánica
da Literatura Medieval, vol. I, Lisboa, Ediçoes Cosmos, 1991, p.
84.
(4) Reynaldo dos Santos, "A iconografia dos Túmulos de
Alcobaça",
Lusitânia, fascículo 1, Lisboa, Janeiro de 1924, p. 87.
(5) Ibidem, p. 87.
(6) António de Vasconcelos, Inês de Castro - Estudos para uma
Série de Lições no Curso de História de Portugal, 2.ª edição
revista, Barcelos, Portucalense Editora, Lda., 1933, p. 94.
(7) A. Vasconcelos, Idem, p. 94.
(8) Livro de Noa de Santa Cruz de Coimbra, in A. Caetano
de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa Real Portugueza
(1744), vo. I, p. 382, apud Maria Leonor Machado de Sousa,
Inês de Castro - Um Tema para a Europa, Lisboa, Edições 70,
1987, p. 15.
(9)António José Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média,
Lisboa, Gradiva, 1988, p. 53.
(10) Moralejo, Idem, p. 83.
(11) Moralejo, Idem, p. 84.
(12) A. Vasconcelos, Idem, p. 91.
(13) Moralejo, Idem, p. 84.
(14) Antonio José Saraiva, Idem, p. 53.
(15) M. Vieira Natívidade, Ignez De Castro e Pedro O Cru
Perante a Iconografía dos Seus Túmulos, Lisboa, Clichés de
António Natividade, 1910, pp. 73 e 75.
(16) Natividade, Idem, p. 75.
(17) A. Vasconcelos, Idem, p. 92.
(18) António José Saraiva, Idem, p. 52.
(19) V. Natividade, Idem, pp. 75 e 77.
(20) A. Vasconcelos, Idem, p. 92.
D. Constança foi a segunda mulher do rei D. Pedro I. Antes ele tinha
sido casado com a infanta D. Branca de Castela, mas por esta ser
doente e pouco "assisada", o infante repudiou-a. Quanto ao casamento
com D. Inês de Castro, não é fácil concluir se ele se terá ou não
realizado.
(21) Moralejo, Idem, p. 85.
(22) Serafín Moralejo, Idem, p. 73.
(23) Refiro-me à obra de Garcia de Resende (1516 é a data da
edição do "Cancioneiro Geral") por ser o texto literário mais amigo
que conta estes episódios. Haverá outros textos tradicionais,
castelhanos e um português, que foram registados no séc. XVI, mas
que poderão ser anteriores a Garcia de Resende.
(24) V. Natividade, Idem, p. 63.
(25) Serafín Moralejo, Idem, p. 73.
ILUSTRACIONES
LÁMINAS 1 y 2 -
LÁMINAS 3 y 4
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