A revelação
de um riquíssimo cancioneiro inédito e de obras maiores de Francisco
António de Almeida |
O
Coro Gulbenkian pela mão do seu maestro
assistene,
Jorge Matta, veio revelar-nos neste concerto, em primeira audição moderna,
algumas obras inéditas dos séculos XVII e XVIII, todas de apurada
factura, que surpreenderam ora pela novidade histórica, ora pela
impressionante qualidade estética.
Na primeira parte do espectáculo, foram apresentadas cinco peças do
Cancioneiro Anónimo da Biblioteca da Ajuda (sé. XVII), que é por vezes
referenciado no âmbito da História da Música Espanhola, mas tem sido,
inexplicavelmente, ignorado pela musicologia portuguesa. Trata-se de um
repertório de canções estróficas com refrão intercalar, geralmente
em língua castelhana, que se insere na moda do "novo romance
cortês ibérico", cultivado nos dois primeiros terços de seiscentos. O
estilo musical deste tipo de canção polifónica é muito semelhante ao do
Vilancico contemporâneo, mas a textura não ultrapassa as três ou quatro
vozes, e a forma resume-se ao esquema AB, AB, etc. (em que B é um refrão
coralmente denso e relativamente extenso).
Das 130 obras anónimas incluídas neste Cancioneiro, pudemos ouvir
cinco, das quais as duas primeiras, "Picola una abeja a Filis" e
"Retratar oy la niña", são especialmente interessantes na sua variedade
e vivacidade, e a última, "Ya las sombras de la noche", marcante
no carácter contemplativo e na subtileza de escrita, próxima do motete
latino da época.
A recriação das partituras, para três vozes e baixo contínuo
(distintamente realizado por
Rui Paiva ao órgão e
Kenneth Frazer na viola de gamba), tirou partido da possibilidade de
confiar certas passagens ou repetições, às flautas de bisel de
Pedro Couto Soares e
Pedro Sousa e Silva, que foram inexcedíveis em afinação, fraseio e
gosto ornamental.
Entre os cantores (em número algo excessivo para este repertório),
destacaram-se a soprano Mónica Santos e o tenor Sérgio Peixoto.
A segunda parte do programa foi integralmente dedicada a obras de
Francisco António de Almeida, que floresceu no segundo quartel de
setecentos, no reinado de D. João V. O "Responsório a 4 concertato",
para a festa de Santo António, "Si quaeris miracula", com o seu curioso
refrão, e o salmo "Miserere mei, Deus", que parece dispensar o "Gloria
patri" final, remetem-nos para um contexto de exaltação religiosa
dissociado da prática litúrgica tradicional, lembrando-nos a função
emblemática, no período barroco, do espectáculo sacro. Estas obras
juntamente com o motete "Justus ut palma", para o "Comum de um Mártir",
e a "Primeira Lamentação do Sábado Santo", confirmaram a rara pujança
artística do compositor, bem servido por uma direcção sintonizada com
estilo e atenta às virtualidades expressivas de cada partitura.
O Coro Gulbenkian esteve aqui no seu melhor, devendo ser feita
menção, pela positiva, aos solos da soprano Marisa Figueira e da
meio-soprano Michèle Roland.
Manuel Pedro Ferreira