ÓRGÃO E LITURGIA
DEPOIS DO CONCILIO VATICANO II
por Fausto Caporali
Organista titular da
Catedral de N.ª S.ª da Assunção, em Cremona
com tradução e notas de Jorge Alves
Barbosa
Funções culturais do órgão
É sobejamente conhecida
a insensibilidade de alguns ilustres organistas (e, por arrastamento,
dos seus alunos) relativamente à liturgia renovada, na qual, em sua
opinião, não será possível exercitar uma qualidade musical superior
nem muito menos o desempenho de um magistério artístico onde o papel
do músico seja favorecido ou incrementado, mas impedido pela
inconsistência da sua utilização ou pela falta de valorização dos seus
recursos culturais. Bem vistas as coisas, esta é a posição de quem,
tendo sido formado no estudo da música do passado, pretende adaptar a
liturgia e os seus tempos à cultura de que se sente porta-voz e não
concede que a liturgia coloque qualquer entrave à execução da mesma
música.[1]
Não acontece raramente que, a coberto e em nome de reconstituições
históricas, se chegue por vezes a forçar a ambientação litúrgica, até
com alguma legitimidade, para obter a recuperação daquela relação
ideal que existia entre a liturgia e a música nos séculos passados;
como se assiste também à reconstrução, em sede concertística, de
partes da liturgia, a fim de recriar, no contexto do próprio concerto,
um momento de revisitação histórico-artística de alto conteúdo
espiritual.[2]
Se é verdade que estas posições representam um extremar dos termos da
questão, também é verdade que o organista moderno prefere considerar o
concerto solístico como sendo o espaço de melhor realização da sua
actividade artística; a sua preparação move-se principalmente naquela
direcção e o serviço à liturgia é visto como um complemento
desnecessário e que não incide, a não ser ocasionalmente, sobre o seu
curriculum.
Isto é consequência de
um processo cultural que, estabelecendo as suas raízes numa
revalorização do passado, iniciada no século XIX e conotando-se com o
objectivismo filológico que chegou ao seu auge de há uns anos a esta
parte, levou à reposição dos repertórios e dos instrumentos que
testemunham o passado, os quais, segundo esta concepção, devem ser
respeitados nas suas particularidades e levados na sua integridade até
ao ouvinte moderno;[3]
se a isso juntarmos a ideia da unicidade irrepetível da obra de arte,
da intangibilidade da música do passado porque testemunha de outros
tempos, do repertório histórico como símbolo mítico de um testemunho
de civilização e da veneração incondicional dos grandes do passado,
daí resulta um conceito de obra de arte reduzida a um objecto que se
deve considerar por si mesmo, exclusivo e auto-suficiente, cujos
contornos resultam supérfluos para a compreensão da própria obra.
A separação
da música, do seu papel de preenchimento funcional (até Mozart), para
assumir o de comunicação pessoal, de expressão individualista (de
Beethovem em diante) e de reportagem histórica (como os concertos
hodiernos) faz com que o organista de hoje possa dispensar-se, mesmo
desempenhando de qualquer modo uma tarefa altíssima e sem que se sinta
diminuído no seu operar, de colocar à disposição do culto a arte de
que se tornou intérprete. A música que ele interpreta pode ser hoje
considerada significativa em si mesma e – sobretudo a partir do séc.
XX – orgulhosamente independente de um destino de ordem prática. Não é
aqui o lugar para nos metermos pelos cominhos de uma análise
particularizada do estado actual da música organística nas suas
relações com o mundo contemporâneo, mas em nosso entender, o papel
eminentemente cultural que tem uma tomada de posição como esta na
forma de considerar o órgão está a correr o risco de não ter cabimento
na relação com uma cultura que se move por outros caminhos e não
compreende a fundo o sentido de reconstrução por parte dos
conservatórios das relíquias do passado como são, na sua substância,
os modelos filológicos cujo requinte de conhecimentos se volta cada
vez mais para um mundo meramente académico. Se, noutros tempos, o
órgão era uma referência privilegiada para a difusão da cultura
musical de forma acessível (com os consequentes altos e baixos) e por
isso gozava de indubitável crédito junto de músicos e público (“o rei
dos instrumentos”), hoje, pelo contrário, vê essa mesma importância
diminuída pela carência de conexão com a realidade moderna e pelo seu
quase desaparecimento no “mare magnum” da música actual; se a figura
do organista até há alguns decénios atrás tinha um relevo e uma
visibilidade notórios no microcosmos cultural local ou nacional, hoje
só se pode gabar, no confronto com essa realidade, de uma parcela de
consistência bem modesta; os revezes económicos confirmam-no
claramente.[4]
Depois de ter perdido o ponto de referência institucional
representado pela Igreja, entendida como patrocinadora e pagadora da
arte, seja por razões históricas de evolução (com o acento posto pelo
Concílio na prioridade da solidariedade sobre as convicções e a
participação pessoal, sobre a valorização dos carismas, e por aí
adiante), seja pelas sobrevindas razões económicas, o organista
encontrou-se na situação de ter que procurar uma realização artística
nos concertos, apoiando-se mais sobre realidades locais favoráveis ou
mesmo sobre uma consideração geralmente partilhada, enquanto que o
novo modo de entender a liturgia ainda não esclareceu até que ponto
haverá necessidade da arte no seio de uma celebração. A ausência de
uma tradição organística de relevo, além do mais, favoreceu a busca de
uma recuperação do antigo e o estudo dos repertórios mais díspares,
criando uma desorientação geral do organista que se reconhece cada vez
menos seguro do seu papel.
Parece, em nosso entender, que o caminho da recuperação filológica não
nos leva senão a uma clausura sectorial e especializada, na qual a
função do órgão resulta relegada para uma posição de restauro dos
repertórios de museu destinados à cultura e, de qualquer modo,
descontextualizados. É necessário talvez percorrer, como complemento
daquelas funções, um caminho mais pessoal, em que o órgão,
revalorizado na consideração da sua funcionalidade prática, possa
encontrar uma nova e mais incisiva configuração artística.
Órgão e criatividade
No momento em que os
estudos e os currículos – além do mais numa maneira justamente laica –
vêm sendo orientados para o concertismo ou para a execução e em que a
criatividade acaba por ser quase excluída, como está a acontecer na
mais recente geração de organistas, vai-se entorpecendo aquela mesma
tensão criativa que gerou as obras musicais do passado e que permite
criar o futuro; se não se activarem modos mais criativos de entender a
função do órgão corre-se o risco de percorrer de modo sempre mais
estandardizado os repertórios do passado e enredar o órgão num estéril
desfasamento espácio-temporal.
O organista pode
assumir hoje a posição de perito cultural e agir positivamente sobre a
cultura musical hodierna como conservador do património do passado;
mas é também preciso que experimente outros caminhos que estejam mais
em sintonia com a história do instrumento: sintonia não no sentido da
reposição estática do passado, acompanhado com a lento do filólogo,
mas no sentido de uma tomada de consciência da sua função de elemento
interagente com a realidade hodierna para prosseguir a história do
órgão sem trair as peculiaridades do mesmo.
Se
existiu, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, um
filão compositivo que usou o órgão de uma forma paralitúrgica (de
César Franck em diante, por exemplo), isto é, de um modo genericamente
desvinculado da liturgia, mas sempre em sintonia com a nobre
compostura do órgão, é também verdade que não se desenvolveu qualquer
filão apreciável de música organística absolutamente independente de
um destino cultual.[5]
Em definitivo, enquanto não parece possível prescindir do conúbio
milenar entre o órgão e a liturgia, ou pelo menos, entre órgão e
inspiração sacra, pois o próprio som do instrumento implica uma
ambientação e uma utilização imbuída de sacralidade, vai ganhando
importância a necessidade de procurar um novo caminho que, por um
lado, liberte o organista dos impasses filológicos (procura da
fidelidade ao original, difícil, de qualquer forma, de demonstrar ou
de pôr em prática, estudo dos repertórios que não se adaptam aos
órgãos, execuções de músicas distantes dos tempos de hoje) e, por
outro lado, seja a expressão de uma inserção na realidade de hoje,
seja ela litúrgica ou espiritual no sentido lato do termo. A
funcionalidade prática do organista pode constituir um ponto de
partida para uma perspectiva voltada para o futuro sem ser a refinada
preciosidade da arte pela arte; provavelmente, como a literatura
organística do passado cresceu no serviço ao culto divino, assim será
preciso procurar agora ali algo que dê uma razão de ser ao órgão e à
sua música; e como, no passado, a variedade de atitudes humanas foi
filtrada na música de órgão em função da liturgia ou das atitudes que
dela brotam, assim aqueles, imutáveis na sua substância, esperam agora
a sua expressão actual. Se analisarmos, ainda que sumariamente, a
realidade que nos circunda (cultura do pensamento fragmentado,
exposição do fluxo do multíplice, desagregação da percepção, etc. e,
no campo da arte, a estética do quotidiano, a simplificação consumista
da arte, a exposição à pluralidade das tipologias artísticas e das
ocasiões de escuta, tecnologização da fruição, cultura da não-memória,
etc.), aparece sempre menos exaustiva, ainda que importante, a ideia
de considerar de modo exclusivo a arte organística como expressão de
uma actividade apenas cultural e como espaço elitista de comunicação;
no jogo dos adiamentos com a contemporaneidade, os conteúdos imutáveis
da liturgia oferecem agora mesmo a possibilidade ao organista de
procurar a própria configuração artística que se aproveite de novos
estilos de fruição: precisamente a sua funcionalidade pode dar maior
sentido ao seu modo de ser e precisamente a riqueza de visões da
realidade pode representar um caminho para produzir novas músicas.
Funcionalidade do Órgão
Eis portanto a questão
crucial: Será possível ser-se artista na liturgia dominical e utilizar
aí aquele conjunto de noções que tornam altamente qualificado um
contributo musical? O organista, no momento em que se insere no rito
em simbiose com outros ministros, pode aí contribuir com o melhor do
seu saber musical? Haverá ainda espaço para compor músicas que, no
exprimir daquilo que o rito actualiza, constituam o sentido de uma
poética inserida nos tempos de hoje? A resposta não pode ser senão
afirmativa, na condição de que aquela mesma concepção de organista que
se viu acima, e que hoje surge preponderante em Itália, venha posta em
discussão e completada. Por outras palavras, se o organista,
utilizando a enorme bagagem de conhecimentos de que dispõe hoje,
repensar o seu modo de agir em vista de uma criatividade pessoal
aplicada à liturgia, conseguirá dar um significado novo àquilo que
executa e chegará a compreender como actuava um artista do passado no
momento em que escrevia as suas obras; a maior parte da música
organística que chegou até nós tinha como primeiro e exclusivo destino
a ilustração de um momento litúrgico e nisto deveria constituir um
exemplo de comportamento mais do que ver-se limitada a objecto de
estudo prevalentemente musicológico.[6]
O primeiro verdadeiro
problema que se coloca ao organista no seu caminho é o vínculo mais
que descontado de um somatório de disponibilidades, seja de tipo
cultural seja de tipo económico, que se devem instaurar entre quem
preside à celebração e ele mesmo, que deve prestar um serviço,
disponibilidades que devem provir da consciência do valor do canto e
da música para a liturgia e da necessidade de tornar flexível completo
e aprofundado o próprio agir. No momento em que se alcança um ponto de
encontro equilibrado e respeitador dos diferentes papéis, então o
organista estará em condições de inserir-se, como ministro que é, em
simbiose com os outros ministros, no desenvolvimento da celebração,
seja em termos de ocasião da celebração, seja de tempos e momentos
litúrgicos, seja do reconhecimento das competências de cada um. Se o
clima que se instaura é positivo, aquele conjunto de repertórios e de
noções que constituem o saber do organista de hoje e que muitas vezes
se crê não poderem entrar nas funções do organista de igreja, podem
tornar-se elementos que conferem qualidade a um serviço; desde as
peças de introdução ou de conclusão das celebrações às meditações
depois da homilia ou depois de uma leitura, até ao trecho executado
antes do canto de comunhão ou do ofertório, o tempo à disposição e as
possibilidades de intervir não faltam e, se se souber, mais ou menos,
a duração das cerimónias, isso pode oferecer inclusivamente uma
oportunidade para a execução de algum trecho mais longo.
Conotações
artístico-litúrgicas da função do Órgão
Tudo isto torna necessária uma prévia reflexão por parte do organista
sobre a natureza de cada celebração e as particularidades de cada um
dos momentos que se vão sucedendo no rito: não basta ser excelente
organista, mesmo que isso seja importante; é necessário, e aqui se
atinge o cerne do ser músico para a liturgia, que o organista, em vez
de se sentir constrangido em espaços anti-artísticos, se disponha a
procurar as possibilidades de realizar de forma adequada as partes da
liturgia que lhe competem por estatuto; instruído por uma formação
litúrgica aprofundada e actualizada, ele deve precisamente conseguir
relacionar-se com os outros ministros numa troca recíproca de
competências e fazer da sua actuação não um “contentor” de obras de
arte estranhas à celebração, mas um contributo orgânico e plástico que
seja expressão do convite: “cantai hinos a Deus com arte”.
É neste ponto que a
escolha das músicas se deve modelar não pela celebração entendida de
modo genérico, mas por aquela celebração particular, com as
particularidades derivadas do tempo litúrgico, dos próprios textos,
das tipologias dos momentos individuais, e por aí fora; o organista
executante poderá recorrer àquelas obras que se podem relacionar com
os cânticos executados ou, na ausência de canto, àquelas obras que se
adaptem à especificidade temática da celebração.[7]
Se a procura de afinidades musicais é menos acessível ao organista
executante (procura contínua de trechos novos, falta de obras
inspirados em cantos modernos, trechos não adequados às possibilidades
técnicas do órgão), uma boa dose de criatividade parece ser o melhor
meio para colocar em acto uma correlação entre organista e liturgia
que seja fruto de particular atenção a tudo o que o rito exprime e
actualiza..
Uma coisa totalmente
diferente é procurar uma ligação genérica à liturgia com a execução de
músicas de autor – algo que é de qualquer maneira positivo, mas onde a
aderência à liturgia se torna, muitas vezes forçada, quando não
impossível, como no caso dos corais de Bach, obras-primas absolutas
que simplesmente anunciavam o coral a ser cantado ou desenvolviam os
seus conteúdos, e que teriam a melhor realização se executados antes
ou depois da execução cantada do mesmo coral – outra coisa é procurar
quais os meios mais idóneos para exprimir um momento litúrgico ou para
executar à volta de um canto apropriado à solenidade. Aqui se joga
todo o conjunto de noções do organista litúrgico que, a partir do
conhecimento pontual da liturgia e com a activação da sua
criatividade, chega a fundir serviço e cultura, realizando uma síntese
que se configura em cada situação às necessidades particulares. Na
prática, o organista comporta-se como o compositor de bandas sonoras
que, com base na imagem ou no “pathos” que deve sublinhar, procura os
sons mais adequados a uma determinada situação.
Um problema cultural
que parece paralisar a criatividade do organista e que muitas vezes o
afasta de enfrentar a novidade é o da linguagem a utilizar: moderna,
dissonante, clássica, de vanguarda, tonal, atonal? Os casos são de tal
modo variados que afastam o estudo das particularidades de cada uma
das tipologias expressivas e induz o organista a recorrer à execução
de repertórios do passado com a consequente dificuldade em encontrar
autênticas correspondências com a liturgia. Aquele pouco de
criatividade que vem exigido não é portanto impossível de encontrar se
nos impomos um mínimo de trabalho preparatório e provavelmente
tornaria um pouco menos inseguro o futuro do órgão se nos concedemos
algum desvio inventivo quer no compor quer no procurar novos sons e
não cairmos inevitavelmente, como está a acontecer no nosso tempo, no
estudo das execuções filológicas e na relativa reproposta de
literaturas do passado. Para adoptar uma linguagem musical é preciso
activar a sensibilidade do organista e a sua capacidade de vivificar o
saber; nenhuma linguagem pode ser excluída e todas as linguagens são
admissíveis: o ponto de vista não é a linguagem em si mesma, mas que
coisas deve exprimir e em que momento da liturgia se insere; um estilo
barroco pode exprimir um momento de meditação da mesma forma que um
“cluster” de sonoridades atonais; o que importa é a ambientação que
daí resulta e que deve estar em sintonia com o que está acontecendo na
liturgia. Uma linguagem pode conviver com qualquer outra da mesma
forma que a nossa cultura é compósita e rica de diferentes estímulos;
o estilo pode ser determinado pela eficácia e motivação pela qual é
adoptado. A linguagem da música de filmes demonstra que o músico
criativo, sem preconceitos e sem cegueiras ideológicas, pode dispor
dos sons de uma forma simples e eficaz em vista de uma finalidade
efetistica, recorrendo às mais díspares técnicas musicais.
A arte da improvisação
é a que melhor sabe curvar-se e adaptar-se à liturgia e ao canto sacro
e pode tornar-se, se adequada ao contexto, intérprete fiel e funcional
da Palavra de Deus; mas não se deve esquecer que é a composição o
ponto mais alto para o qual convergem a expressividade e a reflexão,
lugar da síntese estética de um percurso de reflexão mistagógica.[8]
Mas está precisamente aqui o ponto fraco no que toca às gerações de
organistas actuais: nem a improvisação nem a composição são objecto de
adequada atenção nos currículos escolares e aquilo que sempre fizeram
os organistas do passado e que estava no primeiro lugar no seu “ser
músico” foi posto de parte para dar lugar a um conhecimento
enciclopédico e objectivístico do passado musical. Aquilo que
aparentemente parece ser um enorme enriquecimento de conhecimentos é
na realidade um empobrecimento de capacidades, visto que, sem o
suporte da música escrita, o organista de hoje muitas vezes fica
desorientado e inactivo
Vem a propósito
perguntar-se, neste momento, se a afirmação segundo a qual a Liturgia
não oferecia espaços adequados ao músico artista não derivará de uma
substancial incompatibilidade entre o artista de hoje e o próprio
serviço, no sentido em que são necessárias precisamente aquelas
capacidades que o músico moderno não cultiva; de facto, é evidente que
um executante não consegue facilmente adaptar-se à Liturgia porque
muitas das suas intervenções não podem ser previstas ou porque nem
sempre conhece antecipadamente os cânticos ou porque os tempos da
celebração são flexíveis ou ainda porque a sua biblioteca não é
suficientemente fornecida, com consequentes procuras ou despesas a que
não podemos ficar indiferentes.
Se
o seu leque de capacidades se amplia em todas as direcções, toda e
qualquer modalidade artística encontra a sua adequada colocação, ainda
que com as necessárias aproximações a cada caso, contanto que, no
fundo, exista a consciência da procura e a adesão à Liturgia. Se
olharmos à actividade dos grandes organistas do passado, os espaços de
que dispunham para intervir são mais ou menos os mesmos de hoje e, se
os imitarmos no espírito e na habilidade, (e não apenas no repetir à
letra as suas músicas) poderemos encontrar ocasiões para levar a cabo
da melhor forma o nosso próprio ministério, tanto pela procura de
novas formas musicais e de novos espaços (e nestes o organista
criativo que estuda os efeitos dos sons tem tudo a inventar e não pode
deixar de sentir-se estimulado ) como nas execuções da grande
literatura.
A Liturgia renovada
Na Const. “Sacrosanctum Concilium”
o Concílio Vaticano II salienta a importância do órgão nas
celebrações: “Na Igreja latina tenha-se em grande consideração o órgão
de tubos, instrumento musical tradicional cujo som é capaz de
acrescentar um esplendor notável às cerimónias da igreja e de elevar
poderosamente os ânimos para Deus e para as realidades celestes” (n.
120) O organista não exerce um simples trabalho e não se limita a
proporcionar um contributo artístico no sentido lato do termo, mas
desempenha um “munus”, um serviço, enquanto ministro: “Nas celebrações
litúrgicas, cada qual, ministro ou fiel, no desempenho do seu ofício,
faça tudo e só aquilo que lhe compete, segundo a natureza do rito e as
normas litúrgicas” (n. 28). Fundamentalmente, a sua função deve
traduzir-se numa utilidade comum que procure os mesmos objectivos que
são levados a efeito na própria liturgia. Como cada liturgia é
diferente da outra, assim a sua música não pode senão procurar uma
correspondência àquilo que em cada momento se desenvolve na própria
acção litúrgica. A ambientação sonora que o organista cria deve animar
uma celebração no respeito pelo projecto litúrgico e deve fundir-se
com os outros ministros para dar mais vitalidade, mais cor e também
mais riqueza de sinais ao próprio rito, aplicando à sequência de
gestos e de movimentos uma espécie de vitalidade emotiva.
Se se considera o som
puro, o contributo da música é precisamente este, a saber, um
sublinhado estético emotivo capaz de traduzir num encanto lírico
aquilo que está contido num momento litúrgico; se se considera a
música em união com o canto, aquela acrescenta uma configuração mais
significativa através da dosagem das sonoridades organísticas que é
escolhida na relação com o momento litúrgico ou com o carácter do
canto. “É indispensável que os organistas e outros músicos, para além
de possuírem uma adequada perícia na arte de usar o instrumento,
conheçam e penetrem intimamente o espírito da sagrada liturgia de modo
a que, mesmo devendo improvisar, (…) favoreçam a participação dos
fiéis” (Directório, n. 67),[9]
acrescentando o mesmo documento: “O organista desempenha uma função
indispensável à comunidade e oferece um serviço específico no sector
da animação musical. Para além se possuir uma adequada maestria
técnica deve conhecer e penetrar intimamente o espírito da liturgia
com uma preparação espiritual e com uma riqueza interior. Assegure o
decoro das celebrações segundo a natureza das diferentes partes e
favoreça a participação dos fiéis” (n. 43).
Se
por um lado o organista é chamado a participar nos momentos
celebrativos para dar consistência ao seu serviço, por outro lado é
oportuno que seja procurada a exigida qualidade técnica do mesmo
serviço a qual pode dar substância às competências litúrgicas e deve
estar à altura do instrumento utilizado (quantas vezes se trata de
instrumentos de elevada importância histórica). Se o instrumento é
valorizado no seu melhor, tanto melhor resulta apreciado o seu
contributo para o rito. “O pároco procure conhecer aquelas pessoas que
apresentem particulares capacidades... procure cuidar a sua
valorização e preparação, orientando-os para os Institutos de Música
Sacra ou para particulares iniciativas de dimensão diocesana” (Directório,
n. 90). Um organista deve estar preparado para dar qualidade ao
serviço, seja em ordem à adesão à liturgia seja em ordem a dar
qualidade artística às suas execuções; no âmbito das suas competências
deve entrar também o cuidado e a eficiente manutenção do próprio
instrumento.[10]
O órgão no contexto da
Liturgia
“O uso dos instrumentos
musicais para acompanhar o canto pode sustentar as vozes, pode
facilitar a participação e tornar mais profunda a unidade da
assembleia” (Instrução Musicam Sacram, n. 64). Os elementos que
“favorecem a participação dos fiéis” e que têm a ver com a sonoridade
do órgão (pois o que verdadeiramente contribui para tal é obviamente o
canto da assembleia) podem consistir em criar um clima de festa, como
componente precioso acrescentado à celebração, no sublinhar com a
justa ambientação a natureza de um rito (Exéquias… Matrimónio…) no
convidar ao canto e no constituir-se em apoio das vozes da assembleia;
pode estimular, com adequadas sonoridades à participação a plena voz
quando se trata de uma aclamação ou à introspecção quando se trate de
um momento meditativo, pode predispor à atenção para qualquer coisa
que está para acontecer unificando as expectativas de quem participa;
pode tornar-se ele mesmo em rito se, depois de uma leitura ou da
homilia, convida a repensar aquilo que foi escutado; pode definir o
carácter de um canto em torno do qual desenvolve as suas intervenções
apropriadas e, colocando-se ao serviço do texto, contribuir para
tornar perceptível o momento espiritual. Antes de pensar na celebração
como momento para exibição de uma habilidade técnica e artística é
necessário cuidar a preparação espiritual e litúrgica de modo que o
artista se disponha a partilhar a liturgia colocando à disposição dos
outros o melhor do seu saber (competência profissional). “Os
organistas pertencem também de pleno direito à comunidade cristã,
sendo portanto convidados a seguir os seus ritmos formativos sem nunca
se tornarem estranhos a ela” (Directório, n. 44). Se o
objectivo de uma frutuosa participação é “cantar a liturgia” e não
apenas “cantar durante a liturgia” a música não é só um elemento
ornamental acrescentado ou caído do céu, mas vai realizando o sentido
da celebração e facilitar a participação significa favorecer o papel
da assembleia, verdadeira protagonista da mesma celebração.[11]
O canto na acção
litúrgica faz entrar em jogo o organista na sua função de
acompanhador. Normalmente esta função vem considerada como uma
necessidade banal, visto que a sua realização é simples; na realidade,
torna-se não só importante porque, no tornar-se autêntico serviço, o
órgão anuncia, conduz, e unifica o canto da assembleia, mas torna-se
também ponto de partida e estímulo para o organista quando este deve
tocar à volta do cântico, seja com um prelúdio adequado, no início,
seja durante o cântico com oportunas variações, seja depois com uma
coda musical ou uma improvisação de comentário; tudo isto são
prestações actividades que não são assim tão óbvias, mas que, pelo
contrário, requerem uma adequada perícia na arte da execução e da
improvisação e são complementares de uma pura e simples realização do
acompanhamento ao canto.
O prelúdio ao
canto: O organista propõe a tonalidade, o andamento, a intensidade;
pode variar de uma breve introdução a um trecho estruturado seja de
execução seja de improvisação. O interlúdio: pode intervir no
interior de um canto, entre uma estrofe e a outra; entre o refrão e a
estrofe; entre um refrão e outro, quando está presente um animador
musicalmente preparado. Pode ainda encontrar-se entre dois cânticos
diferentes quando a celebração apresenta momentos mais longos. O
postludio: pode completar o tempo restante entre o termo de um cântico
e o termo do respectivo rito; neste caso, o canto prolonga as
ressonâncias do sentido do cântico precedente. No final da Missa,
depois da despedida, o órgão pode tocar em substituição do eventual
cântico final (que em qualquer caso resultaria complicado para uma
assembleia que acaba de dissolver-se), e prolongar ad libitum o clima
de festa. A particularidade de cada cântico exige um adequado apoio do
instrumento. “Para tal, promova-se a participação de todo o povo com
todo o cuidado e seguindo esta ordem: antes de mais as aclamações, as
respostas às saudações do celebrante e dos ministros e outras orações
litânicas; além disso as antífonas, os salmos os versículos
intercalares ou os refrães, os hinos e os cânticos” (Instrução
Musicam Sacram, n. 16).
No
momento em que acompanha, o órgão deve dosear o som tendo em vista o
canto comum, de modo a não inibir as características expressivas de
cada tipo de intervenção cantada: por exemplo, uma coisa é o salmo
responsorial, outra coisa é a aclamação do Evangelho, outra o
acompanhamento do Credo e outro ainda o acompanhamento do “Santo”.
Além disso, “todos os instrumentos musicais admitidos no culto divino
sejam usados de modo a responder às exigências da acção litúrgica e a
servir ao decoro do culto divino e a edificação dos fiéis (Instrução
Musicam Sacram, n. 63).
Intervenções do
Órgão na Missa
O organista pode
realizar um fundo sonoro que se distingue conforme acompanha uma acção
litúrgica ou acompanha a Palavra de Deus ou quaisquer outros textos
recitados. No primeiro caso, a música deve ser auto-suficiente e deve
comunicar mediante os seus traços compositivos mais estruturados
(harmonia, melodia temas, imitações) no segundo caso deve só pôr em
relevo com discrição o texto que é proclamado e não deve atrair de
modo marcante a atenção dos fiéis. Mais particulares são as
intervenções que acompanham os diferentes momentos rituais da Missa:
“Os instrumentos só devem tocar no início, antes de o sacerdote se
dirigir ao altar, ao ofertório, à comunhão e no final da missa” (Instrução
Musicam Sacram, n.65). Trata-se, neste caso, de intervenções mais
complexas que devem tomar o seu sentido da própria acção litúrgica que
assume ao lado do canto respectivo (ou que assume em algumas
ocasiões). No início da celebração (eventualmente antes do cântico de
entrada ou então entre uma estrofe e outra do mesmo) o som do órgão
introduz no mistério do tempo litúrgico ou da festividade, favorece o
congregar-se da assembleia, cria o clima de festa, estabelece uma
certa diferença entre a situação de dentro e de fora do lugar de
culto, predispõe e prepara para a celebração e confere-lhe o tom
apropriado; a sua função prática é a de anunciar o canto ou de
preparar o tom do mesmo, acompanhar a procissão de entrada do
sacerdote e dos ministros e a sua configuração deveria ser a de
ligação coerente com o próprio canto. Ao ofertório, sobretudo onde
estejam previstos tempos suficientemente consistentes, poder-se-ão
executar trechos de inspiração mais livre, sublinhando o momento de
abertura da liturgia eucarística e da apresentação dos dons[12]
com um destaque musical que prolonga a atenção dispensada à escuta da
Palavra. É sabido que, no passado, os organistas ornamentaram a
“Oração Eucarística” com Elevações e composições cuja atmosfera
tinha a função de acentuar para os fiéis, muitas vezes sem a exacta
percepção de tudo o que estava a acontecer, a importância mística do
momento. Hoje prefere-se colocar em relevo o carácter de acção de
graças através de palavras, gestos e intervenções cantadas, mais do
que o de encontro com o mistério. “O povo louva, faz
memória, oferece, reza. As orações dizem “nós” para evidenciar
que é uma assembleia unida. O uso de uma música de fundo não estará,
portanto, em sintonia com o momento celebrativo. “A oração eucarística
exige que todos a escutem com respeito e em silêncio” (Instrução
Geral do Missal Romano, n. 55). À comunhão, pode prever-se um
espaço musical que preceda o canto comunitário no caso de que este
seja entoado uma vez terminada a distribuição da comunhão; neste caso,
para além da função de anúncio e de preparação tonal que deve
necessariamente ter, o som do órgão, como tradicionalmente é conotado,
pode ajudar a interiorizar o momento litúrgico e a disposição para a
oração. A mesma função pode ser desempenhada por meio de uma coda
musical ao canto quando este é entoado durante a procissão de
comunhão; pode também aceitar-se perfeitamente um trecho escolhido do
repertório organístico. No termo da celebração, a música de órgão pode
constituir uma digna coroa da mesma: uma peça adequada salienta a
particularidade da festa e contribui para prolongar o clima criado
pela aclamação final
Os casos mais concretos
das intervenções do órgão vão-se delineando segundo os diferentes
tempos do ano litúrgico, nos quais o clima sonoro mais contido ou
mesmo a ausência da música de órgão exprimem acusticamente o sentido
de expectativa ou o jejum penitencial: “No tempo de Advento toquem-se
o órgão e outros instrumentos musicais e adornem-se os altares com
aquela moderação que corresponda à índole deste tempo litúrgico, sem
antecipar a plenitude da alegria própria do Natal do Senhor” (Cerimonial
dos Bispos, n. 236); “Durante toda a Quaresma apenas é permitido
o uso do órgão e dos outros instrumentos musicais para sustentar o
canto” (id. n. 41). Torna-se evidente que o organista dever ter
uma competência alargada quando é chamado a tomar conta da
responsabilidade de toda a música que intervém na celebração ou pelo
menos para se adaptar às características de todo e qualquer momento em
que é chamado a intervir; se, pelo contrário, actua no seio de uma
equipa, deve viver a responsabilidade da direcção em sintonia com os
outros: “A preparação prática de cada celebração litúrgica seja feita
de acordo entre todos aqueles que devem tratar da parte ritual ou
pastoral do canto, sob a orientação do reitor da igreja” (Instrução
Musicam Sacram, n. 15).
Para além dos momentos
em que o órgão associa a sua voz ao rito, pode haver outras
intervenções que constituem simples música de fundo das palavras que
são proferidas. O salmo responsorial pode prever uma série de
“intermezzi” de órgão que fazem de ambientação sonora para a leitura
dos versículos entre um refrão e outro; o seu significado poderia ser
o de sublinhar a natureza lírica do salmo no qual a Palavra de Deus
assume uma inspiração poética. O importante é inserir-se com
naturalidade no comentário e ligar-se com propriedade ao momento em
que se reinicia o refrão executado pela assembleia. Algumas
intervenções são de natureza icástica, quer dizer breves, concisas e
particularmente significativas, como a linguagem dos “jingles”. A
música, mais do que apresentar estruturas melódicas ou temáticas
definidas, procede por manchas sonoras ou por gestos rítmicos densos
de significado ou acenos de melodia. Uma breve intervenção depois
da Oração Colecta: para dar tempo à assembleia de se sentar, pode
ser útil um sinal sonoro de destaque, de anúncio ou de chamada de
atenção. Acolhimento do Leccionário ou do Evangeliário: o órgão
pode sustentar com uma registação ou movimento adequadamente solene o
momento. Meditação depois da escuta da homilia: o som contido
do órgão favorece a interiorização, o reflectir sobre a palavra
acabada de ouvir.[13]
Outros momentos: Confissões individuais no âmbito de uma
celebração penitencial comunitária: uma selecção adequada de peças do
repertório pode criar o clima de interiorização requerido. Momentos de
adoração: a contemplação pode ser oportunamente sublinhada pela
sonoridade mais contida do órgão. Nos casamentos: o som do órgão cria
o clima de festa, sublinhando contemporaneamente a solenidade e a
sacralidade do momento. O organista deve esforçar-se por ajudar à
participação coral e à oração da assembleia e contribuir para criar as
ocasiões para um serviço menos previsível. O repertório usual,
composto de trechos tradicionalmente quase obrigatórios pode ser
ampliado e renovado com outros de maior coerência estilística.
O órgão em
concerto
O concerto organístico
pode ser o complemento organístico de um serviço levado a efeito com
seriedade e competência. O concerto, instituição relativamente recente
se pensarmos que até ao séc. XIX, entendia-se apenas como música de
ambiente tanto nos teatros como nas igrejas e consistia em música de
fundo para reuniões religiosas, encontros sociais ou a festas da
aristocracia, é o lugar em que se exprime na maior parte das vezes a
comunicação cultural de hoje. A importância que foi assumindo no
decurso dos tempos induziu os músicos a encontrarem nele o lugar onde
exibir os seu próprio saber musical, continuando a prática
oitocentista que dele fazia um momento de exibição de um solista e o
ideal para o indivíduo se exprimir enquanto protagonista absoluto.
Mesmo que nos dias de hoje se encontre espoliado daqueles aspectos
mais delirantes de outros tempos, o concerto mantém, aos olhos do
músico de hoje, o aspecto do mais alto contributo para a
colectividade; na realidade, visto que aos concertos de hoje em dia
falta o contributo criativo do músico, algo que era essencial até aos
inícios do século XX, o concerto reduz-se hoje à pura transmissão de
cultura Aquilo que era a máxima expressão do génio criador acabou por
assumir, com o passar dos tempos, a mera dimensão de uma reportagem
histórica. Daqui os riscos de uma aplicação exterior dos trechos
executados num ambiente sacro que levaram, em certas ocasiões, a
considerar o concerto na igreja como a ocasião de execução de músicas
não adaptadas ao mesmo ambiente. Se um artista desempenha
fundamentalmente uma missão cultural, deve ser levado a valorizar
sobretudo os elementos históricos e a considerar o lugar em que se
encontra como simples ambiente.
Também o órgão acabou
por se ressentir destes hábitos culturais e transferiu para as igrejas
a instituição do concerto: se a execução do repertório organístico
aconteceu no passado, no que respeita à maior parte da sua produção,
através da liturgia, hoje tende-se a sobrepô-lo à atenção do ouvinte
como criação autónoma (a arte pela arte), colocando em relevo apenas
os seus aspectos artísticos. No caso do órgão, se por vezes o conceito
de auto-referencialidade da música transparece a partir da
proeminência dos aspectos musicais sobre os espirituais dos programas
de concerto, a referência ao espaço está, por norma, fora de discussão
e por isso a sua música assume inevitavelmente uma conotação
espiritual.
Condição essencial para
que um concerto se realize numa igreja é a de que não haja
discrepância entre a música e o espaço sagrado, seja porque são outros
os espaços para a difusão da música profana, seja porque, caso
contrário, não seria respeitado o carácter sagrado do ambiente das
igrejas.[14]
No que diz respeito ao órgão, no momento em que se vão individuando
espaços onde será de inserir a execução de peças de concerto, pode ser
prestado um serviço que se torna mistagógico e cultural se se tiverem
em conta as valências espirituais da música para além dos seus valores
técnicos.
“A organização e programação de peças para concerto a realizar nas
igrejas devem estar em estreita relação com as principais solenidades
do ano litúrgico a fim de estimularem os fiéis para um mais profundo
conhecimento do mistério que se celebra. Para tal, os concertos nas
Igrejas sejam entendidos de preferência como formas de elevação
espiritual em vez de exibições de artistas e de peças de efeito” (Directório,
n. 469).
Há
dois aspectos que podem dar profundidade ao momento concertístico.
Uma referência litúrgica: a inserção da música na preparação das
principais festas litúrgicas (Natal, Páscoa, etc.) ou para acompanhar
as celebrações que cadenciam determinados tempos do ano (Advento,
Quaresma, etc.). Textos bíblicos ou poéticos ou mesmo homiléticos não
deixarão de constituir um enriquecimento ao serem relacionados com
obras musicais pertinentes, enquanto a música de órgão não deixará de
assumir as mais altas funções em união com aqueles textos, tornando-os
mais penetrantes; uma referência artístico-cultural: podem
criar-se momentos de meditação e de contemplação da beleza, que
favorece a predisposição para acolher os valores do espírito; o órgão
como instrumento musical faz parte dos tesouros artísticos da igreja e
sempre foi a expressão dos seus valores espirituais, traduzindo-os em
valões estéticos; mesmo que de modo menos visível, com a execução de
músicas religiosas ou de inspiração religiosa, ele torna-se um veículo
de comunicação espiritual.
NOTAS
DO TRADUTOR:
[1] A
questão é a mesma em toda a parte e a formação musical, mesmo das
escolas que procuram dar uma formação sacra – como o caso da
Escola de Artes do Porto - não parece ter criado um tipo de
mentalidade diferente tendo em conte o que se vê executar por aí,
mesmo no contexto de celebrações litúrgicas. Quanto aos outros
casos é bem claro o que se passa entre nós: os “organistas”
consideram-se concertistas e recusam-se a tocar na liturgia ou
mesmo a respeitar a dimensão sacra da música que executam ou da
música que escolhem para concertos nas igrejas. Basta ver a
estrutura dos programas
[2] Entre nós há
algumas experiências que por vezes rondam o caricato. Autênticas
paródias de liturgia sem qualquer tipo de respeito pela mesma
liturgia, realizadas por pessoas que nem são praticantes. Isto
vai-se vendo mesmo em concertos de Canto Gregoriano onde há muita
técnica, mas falta a alma e mesmo o verdadeiro sentido da
“maestria” do canto litúrgico. Não conheço exemplos disso em
termos de concertos de órgão,
[3] Aqui coloca-se
o problema da reconstituição “histórica” dos órgãos. a qual depois
levanta alguns problemas que não vamos discutir aqui, mas que
apontamos: 1) questão da oitava curta e respectiva dificuldade
para os utilizadores habituais dos órgãos e para a execução do
actual repertório litúrgico musical; 2) a questão da afinação
“mesotónica” que impede a execução do mesmo repertório litúrgico
musical; 3) a questão do diapasão a 415 que cria algumas
dificuldades no acompanhamento e execução de música coral com
relevo para as partes graves; 4) a questão da dificuldade de facto
no manuseamento dos registos nos órgãos históricos por vezes quase
impossível para o organista; 5) a questão da colocação dos órgãos
no coro alto quando o grupo coral está no corpo da igreja em
contacto com a assembleia; 6) a questão da relação entre as
instituições ligadas ao património artístico (IPPAR) e as ligadas
à liturgia que muitas vezes impedem a verdadeira utilização dos
órgãos como instrumentos litúrgicos e obrigam a uma utilização
quase apenas concertística e musicológica.
[4] Não é por
acaso que a questão do estatuto do músico de igreja e da sua
remuneração seja hoje a grande questão em Itália e em Portugal ao
ponto de se tornar um tema recorrente no último Congresso sobre “O
Órgão e a Liturgia hoje”, realizado em Fátima de 20 a 22 de
Novembro de 2003.
[5]
Interessante que sendo César Franck um organista compositor
que dedicou a sua vida à execução organística na liturgia, as suas
obras mais importantes para órgão revelem um carácter claramente
profano, desde a Grende Pièce Synphonique até aos Corais
que utilizam temas de criação própria e não temas litúrgicos como
era habitual. O mesmo se diga de muitos dos seus sucessores com
excepção de Charles Tournemire que revela uma dimensão
marcadamente litúrgica na sua obra. O próprio Olivier Messiaen,
organista litúrgico da Trinité, compõe música “teológica” mas não
litúrgica. Isto terá uma explicação naquilo que o autor apresenta
adiante como sendo a improvisação e o acompanhamento a melhor
maneira de tocar na liturgia. E era o que estes organistas
realmente faziam. Conta-se que Camille Saint-Saëns dizia que
sempre improvisava e apenas executava repertório escrito quando
lhe doía a cabeça…
[6] Como adiante
se dirá, esta deveria ser uma ideia sempre presente nas mentes dos
organistas ao organizarem os seus programas de concerto; o mesmo
se diga do espaço que escolhem para os fazer ou sobretudo do
respeito que o lugar sagrado lhes deveria merecer para além da
mesma música. Não faz sentido executar num contexto profano uma
música que nasceu da liturgia e para a liturgia.
[7] Há obras
adequadas para as celebrações dos grandes tempos litúrgicos, mas
isso requer uma considerável quantidade de repertório na
biblioteca e nos dedos do organista que não será muito habitual.
Mais do que uma limitação, deve tal facto constituir um desafio.
Veja-se a dimensão litúrgica de obras como o “Pequeno Livro de
Órgão” de Bach, ou tanta da música do repertório renascentista
e barroco europeu.
[8] Várias vezes
aparece o termo “mistagógico” no presente artigo. A mistagogia
consiste na explicação dos símbolos e das realidades da liturgia
enquanto expressões do mistério da acção de Deus na vida dos
crentes. A catequese mistagógica era feita particularmente aos
cristãos acabados de baptizar nas celebrações da Vigília Pascal,
durante o Tempo Pascal.
[9]
Não temos, de momento, a referência exacta deste documento
aqui intitulado “Directório” que pensamos ser da
responsabilidade da Conferência Episcopal Italiana.
[10] Estas
indicações vêm na sequência das próprias recomendações da
Constituição Conciliar “Sacrosanctum Concilium” (n. 115 e 127)
e que, na maior parte dos casos, os Bispos não têm na devida
conta: limitam-se a aproveitar os recursos de quem aparece e não
se preocupam com valorizar, promover e ajudar quem tem capacidade;
o resultado está à vista: não só a falta de qualidade musical nas
celebrações, mas também assistimos à degradação do património
organístico das dioceses e paróquias. É sempre o problema
económico a condicionar a própria liturgia…
[11] Tivemos já a
oportunidade de abordar muitos destes aspectos; salientamos
“Presença de Deus na Assembleia que canta” e “O órgão na
liturgia”. As ideias então aí expostas de uma forma quase
intuitiva encontram aqui um eco e um nível de coincidência que me
espantaram. De facto só tive acesso a este artigo depois de
escrever o meu. Caso contrário, eventualmente não o teria escrito…
[12] Dado que o
tempo do Ofertório é normalmente breve porque se limita ou deve
limitar à apresentação dos dons, não há grande espaço para a
execução de uma qualquer obra musical hoje em dia; por isso é um
dos momentos em que será melhor a improvisação.
[13] Esta é uma
prática muito comum ainda em França, por exemplo; tenho algumas
dúvidas sobre a oportunidade destas intervenções do órgão…
[14] Veja-se o
meu trabalho sobre “Concertos nas Igrejas”, comentário ao
documento da Congregação para o Culto divino. Aí são abordados
muitos destes aspectos de uma forma mais precisa.