ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA AMIGOS DO ÓRGÃO

“A Arte e Técnica de Tocar Órgão Aplicadas à

Fuga em Sol Maior de J. S. Bach”

António Mota Dezembro de 2000  -  2/9 

 

Aspectos Interpretativos

“A pior crítica que se pode fazer a um músico é de ele apenas tocar as notas!”

Muitas opiniões consideram o violino como sendo o mais representativo instrumento da música barroca. A forma como um violino barroco é tocado, e consequentemente como o som é produzido, pode servir de modelo para todos os restantes instrumentos, na execução da música desta época.

Em termos concretos, e do ponto de vista da execução ao teclado, isso traduz-se simplesmente pela forma como as linhas melódicas devem ser abordadas: não em legatto (é um conceito mais tardio) mas sempre com (mais ou menos) clara articulação entre notas, como que simulando as arcadas do supra-citado instrumento.

Mas notar que a música, como as outras artes, tem de ser tratada com subtileza, pelo que entre tocar excessivamente “picado” e em legatto absoluto seria até preferível esta última hipótese… A articulação no barroco é a mais poderosa arma de expressão! Por exemplo, o dinamismo de execução duma dada peça pode muitas vezes ser conseguido não através de andamentos mais rápidos (o grau de reverberação do espaço em causa limita o andamento máximo possível) mas sobretudo através duma mais acentuada articulação. Articular uma nota quer dizer separar o seu ataque da nota que a precede, à custa precisamente da duração desta última.

Do que foi dito, se conclui que nenhuma nota dum texto musical barroco deve ser interpretada com a duração que se encontra escrita, mas sempre um pouco menos. E para a quantificação deste “pouco menos” importa referir outro conceito: em conformidade com a ideia de hierarquia como fonte reguladora de inúmeros parâmetros da época barroca, também num compasso existem os tempos “bons” (num quaternário, o 1º e 3º, sendo “melhor” o 1º que o 3º) e os tempos “maus” (2º e 4º, “pior” o 4º que o 2º). Na execução do violino barroco, as notas referente aos tempos “bons” costumam ser executadas com uma arcada para baixo (assinaladas com n, de noble), à partida mais vigorosa que a arcada para cima (v de vil), reservada para os tempos “maus”. Voltando à técnica organística, e na impossibilidade de controlar a dinâmica nota a nota como no violino barroco subtilmente se faz, é através da duração das notas que se consegue o efeito: a primeira nota dos “melhores” tempos deve ser mais acentuada ou apoiada que as outras, através de uma maior duração, mais próxima do seu valor escrito, portanto. Não é também impossível que em certas passagens musicais importantes se possa levar mais longe este conceito, “congelando” momentaneamente o tempo para reforçar o apoio, mas recuperando o tactus logo de seguida.

É claro que da prática sistemática e exaustiva da regra dos tempos “bons” e “maus” resultaria invariavelmente uma interpretação mecanizada e abstracta, pelo que importa neste parágrafo referir excepções e algumas considerações de ordem prática.

Por um lado, 3 casos impõem-se hierarquicamente à regra dos tempos “bons” e “maus”: (i) a dissonância, (ii) a síncopa e (iii) a nota culminante duma linha melódica, que deverão ser sempre acentuadas, independentemente de caírem ou não em tempos “bons”.

Por outro lado, existem composições ou secções de composições de carácter mais improvisatório (baseadas normalmente em fragmentos de escalas e/ou arpejos), onde por vezes a barra de compasso tem pouca (ou nenhuma!) importância, sendo então as linhas melódicas quem ditam os acentos.

Deve-se então pensar em termos de “de onde venho, para onde vou”, e não acentuar artificialmente notas, quebrando a lógica de condução e contorno melódico. Mesmo em composições mais rigorosas ou “cerebrais”, importa também sentir se a pulsação da peça se faz em conformidade com o compasso ou não.

Por exemplo, esta Fuga em Sol Maior pode (deve?) ser sentida como pulsando à mínima, e não à semínima. Este tipo de pensamento é fundamental para evitar cair-se em interpretações “ao metrónomo” ou a “bater o pé”. Em termos práticos, podemos igualmente generalizar que uma sucessão de notas mais longas poderão ser mais separadas entre si (como por exemplo o contra-tema desta fuga, nos compassos 5 a 6), enquanto que uma sucessão de notas rápidas deverão ser menos separadas entre si, ou então fazendo-se grupos de notas, articulando-se mais incisivamente de 2 em 2, por exemplo (ver sucessão melódica do baixo nos compassos 41 a 42), o que ajuda sobremaneira a inteligibilidade do texto musical.

Finalmente, importa distinguir casos em que uma articulação excessiva revela-se absolutamente contra natura, como é o caso de sequências arpejadas (compassos 65 a 67, por exemplo), pois nesta situação a ideia não é que se distingam todas as notas, mas antes que se ouça uma harmonia, que vai sendo construída ao longo do tempo. É a diferença entre tocar a música e tocar as notas! Os pormenores podem cegar, nunca se devendo perder a visão global da questão.

Como nota final, refira-se o rigor rítmico com que se deve abordar uma obra barroca, porventura o aspecto mais importante na interpretação destas obras, e sem o qual nenhum dos outros faz sentido existir! Trata-se mais uma vez da tal questão da hierarquia das coisas. Obviamente que não se quer dizer que num contexto cadencial não devam existir quebras subtis de andamento, para logo de seguida recuperar. Mas flutuações arbitrárias ou injustificadas de andamento retiram unidade à obra e causam mal estar a quem toca e a quem ouve.

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