ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA AMIGOS DO ÓRGÃO

“A Arte e Técnica de Tocar Órgão Aplicadas à

Fuga em Sol Maior de J. S. Bach”

António Mota Dezembro de 2000  -  3/9

 

Aspectos Técnicos

“É preferível uma interpretação errónea nalguns aspectos (registação, articulação, andamento, notas erradas…) mas que seja viva musicalmente!”

Os teclados dos Órgãos pouco têm a ver com a mecânica perfeita e estandardizada do moderno piano. É enorme a variedade de mecânicas existentes, e mesmo dentro do mesmo Órgão, cada teclado pode ter um dado peso e extensão de tecla, ou até certas notas serem estarem mais pesadas que outras. Só uma boa dedilhação e técnica sólida nos pode defender desta realidade! Mas uma técnica correcta serve não só para diminuir a probabilidade de falhar notas como também auxilia à própria interpretação!! Um exemplo desta afirmação encontra-se na forma como a sequência do baixo dos compassos 20 a 23 foi “pedilhada”, apenas usando pontas do mesmo pé:

· do ponto de vista do “falhar notas”, numa circunstância destas alternar pontas não é mais seguro que usar pontas do pé esquerdo, pois trata-se duma passagem por graus conjuntos, cujas notas não apresentam durações excessivamente rápidas; o salto de 4ª (ré para sol) do compasso 21 para 22 é também um gesto típico na literatura para órgão e que deve ser treinado a ser feito só com um pé, pois em muitas circunstâncias permite libertar o outro pé, preparando-o para atacar com segurança as notas que vêm a seguir (notar que do compasso 50 para o 51 a situação é diferente, pois não se está a tocar numa zona problemática da extensão do pedal, pelo que se optou por alternar pontas); em caso de saltos, uma prática possível é manter o pé sempre em contacto com as teclas, roçando ao de leve as teclas, como que a “contar” o número de notas porque passa até atingir a tecla desejada;

· do ponto de vista da interpretação, numa circunstância destas, alternar pontas faria mais sentido se houvesse uma necessidade imperiosa de tocar legatto, o que não está dentro do estilo em causa; e mesmo num contexto romântico onde são frequentes grandes passagens em legatto, seria preferível neste caso (notas no extremo grave da extensão da pedaleira) uma solução mais baseada em ponta-calcanhar, pois é sempre preferível manter a correcta postura no assento.

E a correcta postura aquando da execução ao Órgão é: corpo bem sentado e bem centrado (entre dó e mi do pedal), costas direitas, ombros relaxados, joelhos juntos, pés “encaixados” um no outro, mãos semi-fechadas; o posicionamento dos pés ao longo da pedaleira deve ser feito através da articulação dos joelhos, eventualmente inclinando ligeiramente o corpo para os lados para ajudar a alcançar as teclas dos extremos, mas evitando sempre rodar o corpo no banco; mão imóvel mas nunca rígida, sendo os dedos quem tocam, não devendo haver “golpes” de pulso, tal como na pedaleira o ataque das teclas não é decidido ao nível da articulação das pernas, mas ao nível da articulação do pé; mãos e pés sempre em contacto com as teclas, para sentir a posição onde se encontram, no pedal através de pequenos toques na parte lateral das teclas pretas, antes de se atacar qualquer salto grande (se houver tempo…).

Esta problemática da postura correcta está também relacionada com a teoria do tocar com o número mínimo de movimentos possíveis. Qualquer agitação quer ao nível de rotações no banco, quer levantando excessivamente pés e mãos dos teclados, deixando de sentir as teclas, implica uma perda de referências, i.e., deixa-se de saber onde se está, o que frequentemente exige o uso da visão para nos reorientarmos, introduzindo um elemento de distracção e desconcentração totalmente indesejáveis.

Em conformidade com esta ideia do movimento mínimo essencial, para manter um controlo mais apertado dos acontecimentos, encontramos por exemplo a forma como é “pedilhado” o tema da fuga (ver compasso 17, por exemplo), onde se usam “saltos” com a mesma ponta em detrimento da opção de pontas alternadas pelos motivos anteriormente expostos, ou em detrimento da opção ponta-calcanhar, à partida mais destabilizadora por natureza caso a altura do assento ao banco não seja a ideal, e/ou o sapato não tenha um calcanhar adequadamente alto, e/ou no caso de pedaleiras de formato pouco standard (notar ainda que uma técnica apurada permite até tocar ligado aquando do “salto” por graus conjunto de pontas com o mesmo pé, através do recurso à inclinação do pé). Quanto às mãos, alguns exemplos de regras de boa prática são:

· a dedilhação deverá ser escolhida de modo a tocar o maior número de notas possíveis, mantendo a mão imóvel; por exemplo, a fuga ao começar com o dedo 2 permite tocar naturalmente durante a duração correspondente a 4 semínimas (exemplo óbvio!); ver também como a mão esquerda se mantém imóvel durante quase 4 compassos a partir do 16, ou como os arpejos a partir do compasso 65 são dedilhados, ou como a posição da mão direita se mantém desde a segunda metade do compasso 69 até ao fim do 71, ou como na segunda metade do compasso 52 se escolhe uma dedilhação que permite tocar com risco mínimo e praticamente sem mexer a posição da mão até ao fim do outro compasso, etc., etc.;

· consequência directa da regra do movimento mínimo a tocar é evitar a todo o custo que se use o polegar para tocar as notas pretas, pois isso implica uma deslocação brusca da mão para a frente, retirando-a da posição correcta no teclado; há situações inevitáveis, como por exemplo se vê no compasso 34, mas está devidamente preparada para evitar o movimento brusco da mão;

· a substituição de dedos deve ser usada apenas como último recurso; as excepções são as circunstâncias em que a substituição é natural e não implica esforço nenhum (como a linha do soprano dos compassos 9 e 10) e quando se trata de uma substituição para ajudar a posicionar a mão no teclado para os dedos atacarem o que vem a seguir (como por exemplo no compasso 45, quando a mão esquerda ataca a primeira nota do compasso com o dedo 4, pois era a posição com que vinha, e depois substitui para o polegar para que o ataque da próxima nota com o 3 não falhe; situação análoga no compasso 80); as substituições de dedos sobre a mesma tecla com repercussão devem ser feitas no início dos tempos, em situações como as dos compassos 46 e 62, na mão esquerda e mão direita, respectivamente, evitandose assim uma subdivisão do tactus potencialmente destabilizadora, que pode alterar a percepção da pulsação e dos tempos “bons” e “maus”;

· ao invés da substituição, é de longe preferível fazerem-se passagens de dedos ou até saltar (por grau conjunto) ou escorregar dedos, desde que não seja entre notas de duração demasiado rápidas, claro; por exemplo, escorregamento da primeira para a segunda nota do soprano no compasso 8, ou salto por grau conjunto no compasso 56, no soprano, do segundo para o terceiro tempo; obviamente que se deve evitar mais que um salto consecutivo (excepção feita ao polegar), além de que, considerando o caso da mão direita, os dedos 1 a 4 (sobretudo o primeiro) são adequados para realizar saltos quer para o agudo quer para o grave, enquanto que o 5 “funciona” melhor descendentemente (vice-versa para a mão esquerda);

· quanto às passagens de dedos, são feitas mais naturalmente através do polegar, de preferência sem interromper uma determinada lógica melódica, como por exemplo se passa no soprano do compasso 42; a passagem do 3 para o 4 (eventualmente outros dedos) é também possível, sobretudo quando se tratam de passagens de notas brancas para notas pretas, como por exemplo no início do compasso 41, no soprano; aquando de passagens, há que em geral evitá-las nas situações de nota rápida para nota lenta em detrimento do caso oposto, como poderia haver tentação de fazer na mão direita no compasso 12 do primeiro para o segundo tempo, por exemplo (na verdade, neste caso evitou-se uma substituição potencialmente perigosa em detrimento duma substituição em situação de repercussão de nota);

· a divisão de vozes pelas mãos deve em muitos casos ser escolhida não em conformidade com o que está sugerido ou subentendido no texto musical, ou como aparentemente parece ser mais fácil, mas considerando-se antes o tipo de desenhos em causa, atribuindo um tipo a cada mão; por exemplo, na segunda metade do compasso 70, a mão direita faz semicolcheias e a esquerda colcheias; no compasso 12 deixa-se a mão direita a fazer o tema e a esquerda a fazer o “acompanhamento”; no fim do compasso 79 a mão direita deve tocar antes sol e não si (cruzando com a esquerda), pois trata-se do tema da fuga;

· no caso de saltos bruscos, aquando de mudanças de secções, por exemplo, por vezes ajuda que ambas as mãos ataquem com o mesmo dedo, como por exemplo na passagem do compasso 80 para o 81; de qualquer modo, o fundamental será sempre a preparação da mão e dos dedos antes de atacar as notas; é como um tocador de carrilhão, que na verdade não toca “a murro” como se pensa (esfolava as mãos num instante!), mas trabalha muito na base da preparação antes de accionar tecla, i.e., sente-a primeiro após um movimento rápido e decidido de posicionamento da mão.

A dedilhação é, no entanto, uma questão bastante pessoal, como prova a forma pouco ortodoxa como os compassos 48 e 49 estão dedilhados! O importante a reter destas considerações, e em particular da forma como esta Fuga em Sol Maior foi dedilhada, é: (i) minimizar os movimentos desnecessários, (ii) preparar sempre o ataque de todas as notas e (iii) evitar que demasiadas coisas aconteçam ao mesmo tempo (como por exemplo no compasso 17, onde a entrada de mais uma voz é per si uma complexidade adicional, dispensando outras complexidades impostas por uma dedilhação menos pensada, como seria fazer nesta altura fazer substituições de dedos e mudanças de posição das mãos, o que não é o caso desta dedilhação em que todas das notas estão prontas a serem tocadas sem precisar “procurar as teclas”).

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