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OS CORAIS
PARA ÓRGÃO
DE CÉSAR
FRANCK
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“Como se tivesse
consciência do fim que se aproximava, César Franck compôs, aos sessenta
e oito anos, em Nemours, os Três Corais para Órgão, nos quais
transborda toda a sua fé profunda, elevando-os à altura de um verdadeiro
testamento musical e espiritual”.[1]
Estamos efectivamente em presença de um testamento, na medida em que
esta trilogia não só representa um resumo de toda a obra que o autor
legou para a posteridade - constituindo mesmo a sua obra derradeira,
composta no verão de 1890, uns meses antes de morrer[2]
- mas define também uma herança que haveria de orientar os compositores
das gerações seguintes no caminho de uma verdadeira renovação da
literatura para órgão. Trata-se também de uma afirmação de fé, em
primeiro lugar, na Santíssima Trindade,[3]
já que não estamos simplesmente em presença de três corais, como se
pudessem ser dois ou trinta, a exemplo de outros compositores que
compuseram corais para órgão; estamos em presença de uma autêntica
“trilogia” em que as relações de continuidade e de contraste, as
relações de proximidade estrutural, as relações com a restante música
para órgão nos revelam um sentido de unidade verdadeiramente
impressionante. Uma afirmação de fé pelo estado de elevação e quase de
arrebatamento extático que a sua audição provoca, pois, como dizia
alguém, “quase não nos deixam respirar”, tal é a densidade harmónica e o
sentido de liberdade rítmica ali presente bem como uma constante
“presença-ausência” dos seus elementos temáticos. São, ao mesmo tempo, a
expressão de uma vida: uma vida eventualmente marcada pelo sofrimento[4],
pela inquietação de quem conheceu não poucas desilusões e incompreensões
e pela procura constante da sobrevivência económica, do reconhecimento
dos seus méritos, da compreensão do sentido e valor da sua obra, mas
uma vida que também teve a consolação de encontrar quase tudo aquilo por
que efectivamente lutou; já no final da vida pôde deixar sair do coração
a frase: “Vá lá, eis que o público me começa a compreender”. São também
a expressão de um sentido de tranquilidade, de felicidade e serenidade
que nos revela aquele César Franck já projectado para a eternidade onde
pensava “acabar os seus projectos, se Deus o deixasse”, ideia que
poderíamos eventualmente descortinar na conclusão da obra, com aquele
acorde de Lá Maior em posição de terceira no agudo…
“Antes de morrer
hei-de escrever corais para órgão como fez Johann Sebastian Bach, mas
noutro plano” – dizia César Franck; depois de uma vida de grande
actividade como organista improvisador, depois de uma obra considerável,
mesmo falando na literatura escrita para órgão; faltava-lhe dizer uma
última palavra, mas “noutro plano”. O “Coral” como forma musical
organística fora abordado de diversas maneiras por quase todos os
organistas do passado e mesmo pelos contemporâneos de Franck,
nomeadamente no mundo germânico como é o caso Johannes Brahms ou Max
Reger, mas nunca se afastando da temática do “coral tradicional
luterano” e dentro das formas do Prelúdio Coral[5]
ou da Fantasia Coral ou mesmo da Sonata como fizera Félix
Mendelssohn-Bartholdy. Não sendo uma forma habitualmente presente na
música organística francesa, mesmo em compositores prolíficos como
Saint-Saëns, César Franck, assume o Coral como algo de totalmente novo,
no material – não se baseia nos corais protestantes - na concepção, na
estrutura e mesmo nas proporções; estamos efectivamente noutro plano.
Assim, no Primeiro Coral, recolhe o legado da variação
beethoveniana, através de uma delicada transformação dos temas que quase
nunca se chegam a definir verdadeiramente, aliada a uma densidade
cromática tão subtilmente elaborada que quase escapa ao ouvido, apesar
de demasiado evidente na leitura; no Segundo Coral temos um
tributo à música barroca através da utilização do contraponto e da forma
tradicional da Passacaglia e Fuga numa linguagem extremamente
delicada e onde o cromatismo apenas aflora no que seria o verdadeiro
Coral, já em si revelador do lirismo presente em outras obras do autor;
no Terceiro Coral temos uma homenagem directa a Bach e ao
Prelúdio em Lá menor – e, indirecta à técnica violinística
vivaldiana - temos um apelo à dimensão marcadamente tocatística de tanta
música de órgão e particularmente daquela que se afirmava mais popular
no seu tempo e ainda um tributo à forma sonata em três andamentos;
trata-se além do mais, de uma obra em que, mesmo assim, o “Coral”
propriamente dito surge de forma mais evidente. É neste Coral que
encontramos talvez um dos momentos mais altos do lirismo franckiano:
aquele maravilhoso Adagio da parte central.
Dentro do que
poderíamos apresentar ainda como elementos comuns aos Três Corais
para Órgão seria importante salientar o processo compositivo e a
dimensão estrutural das obras; é mais ou menos comum acentuar a
estrutura cíclica presente nas obras do autor e particularmente nos
Corais, mas iríamos mais longe, ainda que utilizando uma linguagem um
tanto simplista, talvez; poderíamos dizer que os corais de Franck se vão
compondo a partir de elementos extremamente simples, quase como um
processo invertido de variação, na medida em que a variação parece
surgir antes do tema propriamente dito: são elementos que se vão
ajuntando, organizando como peças de um puzzle que, não denunciando à
partida qualquer imagem, nos deixam surpreendidos ao final com o
resultado obtido. Do ponto de vista da estrutura, encontramos nos Corais
de Franck algo de muito original a que poderíamos chamar “estrutura
concêntrica”: de facto, tudo converge para uma secção central onde os
diferentes elementos que vão surgindo ao longo da obra se conjugam e
entrelaçam num complicado e extremamente bem elaborado processo de
construção. Assinalaremos essa secção central em cada um dos Corais, mas
poderemos dizer, desde já que parece assistirmos a um processo de
composição mais ou menos assim: Franck elabora os temas, organiza as
ideias em ordem à construção dessa secção central e depois, como que
dando-se conta da sua riqueza, explora cada um deles e apresenta-o,
antes como preparação e depois como resultante… Do ponto de vista das
proporções da obra, não encontramos paralelo em toda a literatura
organística anterior ou mesmo posterior: trata-se de obras que rondam os
quinze minutos de duração e uma extensão que vai dos 199 compassos do
terceiro aos 289 do segundo
1. Primeiro Coral, em Mi Maior:
“Verão que o
verdadeiro coral não é aquilo que se pensa – diria Franck a Vincent
d’Indy - vai-se fazendo no decurso da obra”. Este Primeiro Coral
articula-se em quatro secções com solução de continuidade: uma primeira
secção introdutória vai apresentando alguns dos elementos constitutivos
em pequenas frases (1-46) até que surge aquilo que poderia ser o “coral”
propriamente dito; segue-se um conjunto de variações sobre os elementos
da primeira secção (65-86) até que volta a surgir o coral. Uma terceira
secção inicia-se com um tema novo apresentado por meio de uma
“transição”[6]
em Dó maior (106-170), tema esse que vai também ser desenvolvido
intercalado com nova apresentação de fragmentos da secção inicial até
chegarmos à “secção central” com a sobreposição do tema do “coral” em
menor e dos temas desta terceira secção (170-205). Aqui situamos o ponto
fulcral da obra, apesar da aparente simplicidade, em virtude da relação
próxima entre os dois temas que se conjugam em contraponto invertido.
Uma quarta secção (206259) reintroduz o tema inicial agora não variado,
mas fragmentado e reduzido em “stretto” numa progressão cromática que
conduz à última aparição do coral na tonalidade principal. Uma
pequeníssima coda (255-259) é constituída pela citação reiterada do
início das variações o que, recordando o motivo inicial, confirma a
estrutura concêntrica da obra.[7]
2. Segundo Coral, em Si menor:
O Segundo Coral
constrói-se numa estrutura mais acessível à compreensão mesmo numa
linguagem harmónica mais simples se a compararmos com a densidade do
anterior; a secção central da obra encontra-se na apresentação do coral
(195-210): aí, o coral propriamente dito é sustentado, na pedaleira,
pelo tema que será o elemento base da secção inicial “passacaglia” e da
“fuga”. Assim sendo, e como já se disse anteriormente, este coral
desenvolve-se dentro da forma da Passacaglia e Fuga com o Coral
muito claro em secções intermédias; ao mesmo tempo notamos o contraste
entre uma linguagem predominantemente diatónica da Passacaglia e da Fuga
e uma linguagem mais cromática do Coral. A secção inicial (1-64) é
constituída pela Passacaglia, com a apresentação do tema ora na
pedaleira ora na parte aguda dos manuais; surge então o Coral (65-126)
em diferentes secções entremeadas com passagens em estilo de
“recitativo” e em progressão modulante. A cadência final do Coral, com a
relação maior-menor, faz lembrar algumas passagens de outras obras do
autor, nomeadamente o Cantabile e Pièce Héroïque na mesma
tonalidade.
Uma secção de
recitativo “teatral”, em estilo livre e com fantasia, onde aparece uma
citação do Coral, conduz-nos à Fuga: (148-194) o sujeito é o
mesmo tema da Passacaglia, apresentado de imediato com um
“contra-sujeito”, mas na tonalidade afastada de Sol menor e numa
exposição normal; uma passagem com o CS em “stretto” conduz-nos à
repercussão do tema no VI grau (Mi bemol) depois do que aparece o Coral
na tonalidade de Mi bemol menor e Fá sustenido menor (195-225) mas agora
com o tema principal por base, constituindo aquilo a que chamamos
“secção central”. A uma passagem modulante e “fantasista” derivada do CS
da fuga (226-246) segue-se uma nova apresentação da segunda secção do
Coral conduzindo à última aparição do tema em acordes com o CS na
pedaleira; o tema passa depois para a pedaleira e o CS para a mão
esquerda, confiando-se à mão direita o acorde da tonalidade inicial num
contraste com o mesmo acorde com a quanta alterada; esta levará a uma
última apresentação da terceira secção do Coral, numa conclusão
extremamente suave e serena apresentada pelas “vozes celestes” e com uma
cadência assinalada pela presença do CS da Fuga.
O acorde final em Si
Maior – descrito pelos comentadores com palavras como tranquilidade,
serenidade, recolhimento ou êxtase – é marcado por um pequeno motivo na
pedaleira que, pouco ou nada tendo a ver com o resto da obra, não deixa
de ser curioso e significativo: várias vezes assinalámos o contraste
entre a modalidade maior-menor, apontámos o contraste entre a linguagem
diatónica e cromática, assinalámos a dimensão dramática dos próprios
recitativos; agora, depois desta luta “luz-trevas” encontramos
finalmente a luz na brilhante tonalidade de Si Maior, à semelhança do
que acontece no Cantabile e Pièce Héroïque. Não admira,
pois, que Franck nos brinde agora com a subtileza de um motivo que não é
mais que a citação da oratória A Criação de Haydn, na passagem em
que o texto diz: “…Und Gott sah das Licht” (…e Deus viu a luz)…
3. Terceiro Coral, em Lá menor
O Terceiro Coral
constitui um tributo à sonata em três andamentos, uma homenagem à
música organística de Bach e à música litúrgica tradicional católica com
a utilização da modalidade antiga; três andamentos contrastantes e
perfeitamente identificados na estrutura global da obra: Quasi
allegro – Adágio – Andamento inicial. O elemento gerador central,
tal como nos outros corais, encontra-se na sobreposição do tema do
Adágio e do tema do Coral, (117-126) se bem que o mesmo Coral venha a
ser também sobreposto ao tema da tocata no terceiro andamento.
O tema A é uma
citação do Preludio em Lá menor de Bach apresentado em jeito de
tocata (1-14) seguida de uma ponte modulante (15-30) constituída por um
conjunto de acordes que dão entrada ao tema B (30-47) que constitui o
Coral propriamente dito em modo “deuterus” ou “frígio”. Segue-se uma
reexposição com nova entrada de A na tonalidade de Mi menor (48-56),
seguida novamente da ponte modulante e do tema B de características
modais, mas com uma cadência em Lá menor (56-79). Nova apresentação do
tema inicial com um pequeno desenvolvimento e novamente a ponte
modulante (80-96) que conduz agora directamente ao segundo andamento.
O segundo andamento –
Adágio – desenvolve-se no modo “dórico” ou “protus” em Fá
sustenido (96-116), mesmo que inicie na tonalidade de Lá maior (pela
harmonização) e com um ataque por meio da apogiatura da terceira
(prolongamento da sétima da Dominante); trata-se de uma melodia de rara
beleza, profusamente modulante, até concluir em Lá maior, dando entrada
ao Coral (117-127), agora apresentado nesta tonalidade, ao qual se
sobrepõe novamente o tema do Adágio (a parte central e mais
construída da obra). Terminada a apresentação do Coral, um fragmento do
tema deste andamento, em desenvolvimento modulante, conduz a um conjunto
de sucessivas entradas do mesmo tema, agora em “stretto”, (130-146) a
partir da tonalidade de Ré bemol. Esta prepara nova entrada do Coral
que, em “fortíssimo”, prepara a entrada do terceiro andamento.
Este andamento
(147-199) volta ao estilo tocatístico, em movimento vivo, mantendo-se
depois da entrada do Coral que se vai sobrepondo de diversas formas a
uma espécie de movimento perpétuo da própria tocata; só na parte final
com a última frase do Coral (190-194) desaparece o elemento tocatístico
para dar lugar a uma secção de acordes “como que os contrafortes desta
catedral sonora” conduzindo a uma cadência bem definida (193-194),
embora bastante cromática (IV alterado - II alterado - V-I). Uma coda
construída com os elementos da ponte modulante do primeiro andamento,
sob pedal superior da tónica (194-199), conduz à cadência final plagal –
mais uma evocação do repertório litúrgico tradicional – com o acorde
final maior (picarda) na posição de terceira, o que provoca aquela
sensação de projecção para o alto de que falámos anteriormente.
“Os Três Corais
para Órgão resumem a aspiração de uma alma em relação à claridade da
paz divina e à felicidade celeste” e, por isso, eles são portadores
daquela dimensão ecuménica que transforma um género nascido e criado em
ambiente claramente protestante numa das expressões mais eminentes da
literatura organística do mundo católico e nascida da pena de um
fervoroso crente. Ao mesmo tempo César Franck soube transfigurar
verdadeiramente as formas musicais do passado, oferecendo-lhes uma nova
linguagem e tornando-as portadoras de novas possibilidades no campo da
criação musical; por meio desta transfiguração, Franck exprime
claramente o verdadeiro sentido e o dinamismo da tradição, e aponta
caminhos aos compositores e organistas do futuro como se pôde ver pelo
renascimento e expansão da música francesa para órgão por todo o século
XX; ele soube também transfigurar a linguagem harmónica conferindo um
sentido quase místico à sensualidade que dimanava das harmonias
cromáticas da música wagneriana. Nos Três Corais para Órgão
encontramos um autor amadurecido, portador de uma nobreza e austeridade
de linguagem organística já purificada daquela superficialidade
característica da obra do autores e instrumentistas do seu tempo –
Lefébure-Wély, Alkan, etc. - e ainda presente em obras anteriores suas
como Finale ou Pièce Héroïque, e purificada mesmo de
algumas influências da música de piano como acontecia nas suas primeiras
obras, particularmente na Grande Pièce Symphonique. Aqui se
revelam também novas possibilidades conferidas ao órgão pelas técnicas
mais recentes da construção organária, por uma paleta tímbrica
incomparavelmente mais rica e por uma concepção orquestral da música
organística que confere ao elemento tímbrico uma posição fundamental na
própria estrutura da obra.
Uma palavra final
sobre a registação da obra de Franck e particularmente dos Três
Corais: são claras e precisas as indicações que o autor nos fornece
no respeitante à registação da sua obra, mas já não é tão claro o que
efectivamente ele pretende.
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Para tal,
haverá que ter em conta as características particulares do órgão
da Igreja de Santa Clotilde, sobretudo na suavidade das palhetas e
na sonoridade particular da Voz Humana; por isso mesmo, nem em
todos os instrumentos poderemos seguir as indicações do autor,
sobretudo no que respeita à utilização de Oboés e Trompetes que na
maior parte dos casos resultam demasiado agressivos, e também a
sonoridade particular dos jogos de Fundos nomeadamente no que
respeita à utilização ou não das Misturas. |
O importante será
compreender e transmitir o ambiente de serenidade e de espiritualidade
que as obras pretendem e um grande sentido do equilíbrio sonoro e de bom
gosto.[8]
[1]
JEAN GALLOIS, “Franck, um inovador”, in Enciclopédia Salvat dos
Grandes Compositores, Vol. 4, p. 204.
[2]
Franck compôs os Três Corais entre Agosto e Setembro de 1890,
vindo a falecer em 8 de Novembro do mesmo ano. Nunca os chegaria a
ouvir como obra integral e consta que, já muito debilitado, ainda se
deslocou a Santa Clotilde para preparar as registações.
[3]
Uma imagem sempre presente como expressão da fé de César Franck e
que ele exprime de diversas formas na sua vida e obra, nomeadamente
pelo processo dialéctico de tese-antítese-sintese com que estrutura
as suas obras.
[4]
Recordava-nos o organista italiano Giancarlo Parodi a afirmação de
alguém segundo a qual era preciso ter sofrido muito na vida para
compreender e interpretar bem a obra de César Franck…
[5]
Franck escreveu, curiosamente, um Prelúdio, Coral e Fuga para
piano, de elaboração totalmente própria, uma das obras mais
marcantes do autor e da literatura romântica para piano.
[6]
Chama-se “transição” ao processo de modulação rápida a tons
afastados que consiste em tomar a nota mais aguda de um acorde e
utilizá-la para como nota mais aguda de outro acorde; no caso, a
nota “mi” que é fundamental da tonalidade de Mi maior e se torna a
terceira de Dó maior.
[7]
Uma análise, muito mais pormenorizada e um pouco diferente na
concepção, se pode encontrar por exemplo em FRANÇOIS SABATIER,
César Franck et l’Orgue, Ed. Que sais-je?, P.U.F. Paris, 1982,
p. 87, de onde retirámos também algumas das ideias aqui expostas.
[8]
Poderemos encontrar algumas notas importantes sobre a registação das
obras de Franck e mesmo das diferentes tendências surgidas a este
respeito em GIUSEPPE RADOLE, Le Registrazioni Organistiche nelle
Culture Europee, dal 1500 al 2000, Ed. Pizzicato, Udine, 2001,
p. 208-217.