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1. A música instrumental no culto cristão:
Herdeiro que era da tradição cultual de sinagoga, desprovida de música
instrumental, e de uma tradição musical grega em que o uso de
instrumentos estava relacionado com manifestações dionisíacas, no culto
cristão, a música via-se entre dois pólos opostos e em contradição com
toda uma tradição litúrgica do Templo de Jerusalém veiculada pela
Sagrada Escritura e com uma componente instrumental considerável. A
proximidade dos cultos pagãos, onde a música instrumental tinha um lugar
proeminente explica as reservas dos primeiros cristãos à música
instrumental. "O emprego então feito do aulos, do saltério e das
percussões nos banquetes orgiásticos e nos cultos idolátricos, ou então
o emprego das trombetas nas batalhas e do órgão nos cortejos imperiais
ou nos jogos de circo certamente suscitaria uma repulsa em pessoas que
se sentiam portadoras de uma nova visão do mundo, estritamente crítica
nos confrontos com a sociedade".
[i]
A música possivelmente transmitida pelo judaísmo, das
sinagogas para a comunidade cristã primitiva, era apenas cantada. Ao
mesmo tempo, os pensadores cristãos haveriam de partilhar um favor
especial pelos assuntos teóricos, aliás, no seguimento da teoria musical
grega, pelo que o lugar dos teóricos musicais era mais elevado que o dos
instrumentistas e cantores. Não é por acaso que Santo Agostinho se
apresenta, no séc V, como um dos primeiros teóricos da música e não será
de estranhar que as suas opiniões não abonem muito em favor dos cantores
e muito menos dos instrumentistas. Para o doutor hiponense o
instrumentista é alguém que se exercita para repetir por imitação os
gestos que aprendeu de outro e, repetindo-os constantemente, não é mais
que um "macaco de imitação"...
[ii]
Aureliano de Reomé, no séc. IX, diz que o cantor está para o teórico
como o réu para o juiz, e acrescenta outras barbaridades que
desembocarão no célebre dito de Guido de Arezzo (séc. XI): "entre
músicos e cantores há uma enorme distância; os primeiros conhecem o que
é a música ao passo que os segundos apenas a executam. Ora executar algo
que não se conhece é próprio dos animais".
[iii]
O instrumentista era colocado ainda abaixo do cantor, principalmente
porque no mundo pagão os instrumentistas tocavam sobretudo nos banquetes
onde o respeito pela música seria menor que o interesse pelo vinho, sexo
e outras componentes... No meio da algazarra e dos efeitos do álcool,
aliado aos movimentos de dançarinas, aparece o instrumentista antigo,
tocador de "aulos" (espécie de oboé), ou de "tíbia", uma espécie de
flauta de osso e, por isso mesmo, conotada com a morte
[iv]
.
Como poderia a Igreja acolher no seu seio e no seu culto pessoas e
objectos conotadas com tal ambiente?
Foi em virtude dessas conotações ambientais da música
instrumental do mundo greco-romano que a Igreja primitiva não concedeu à
música instrumental o lugar que tivera no culto judaico do Templo e que
haveria de assumir depois. Como gostavam de referir os Padres da Igreja,
e particularmente Santo Agostinho "o canto antigo cantava-se com a
antiga cítara e com o saltério; o canto novo, mais digno de Deus,
canta-se com uma cítara viva e com o saltério de dez cordas, os sentidos
interiores e exteriores".
[i]
Cfr. EUGENIO COSTA, "sacra, musica" in DEUMM, e ainda QUASTEN,
Musik und Gesang in den
Kulten den
Heidenisch,
Munster, 1972.
Já TERTULIANO
no séc. III, apresenta uma das mais negativas referências aos
instrumentos musicais: "... nemo denique in spectaculo ineundo prius
cogitat nisi videri et videre sed tragoedo vocifarante exclamationes
ille allicuius prophetae retractabit et ineter effeminati tibicinis
modus psalmum secum comminiscetur" (De Spectaculis, XXV,3) [
...e não se encontra outra intenção ao ir a um espectáculo que não
seja a de ver e a de ser visto. Quando se ouve um declamador de
poemas trágicos vai-se pensar ou evocar a palavra dos profetas? E ao
ver os gestos efeminados do tocador de flauta vai-se evocar o canto
dos salmos?..."].
[ii]
No mesmo sentido vai SEVERINO BOÉCIO, um dos mais eminentes teóricos
da música e que consegue fazer a síntese entre a teoria grega e a
prática musical judeo cristã, na sua obra De Institutione musica,
cap. XXXIII. (Cfr. texto em G. CATTIN, La Monodia nel Medioevo,
p. 216 e SOLANGE CORBIN, La Musica cristiana, p. 51-53).
[iii]
Cfr. SOLANGE CORBIN, La Musica Cristiana, Ed.
Jaca Book,
Milano, 1983, p. 35-37.
[iv]
Efectivamente, os instrumentos musicais assinalavam os mais
importantes acontecimentos da sociedade pagã do Império: cortejos
triunfais, jogos, festas religiosas. Sabe-se mesmo do interesse
particular de alguns imperadores pela música como o caso de Nero,
Tito e Domiciano. Mas a música vem igualmente ligada aos banquetes
com a sua componente edonística e ao lúgubre espectáculo de sexo e
sangue dos circos romanos" (cfr. RENATO CHIESA, "Roma" in DEUMM);
Solange Corbin apresenta aforismas ainda mais radicais como: "o
cantor na sua igreja, os instrumentistas na fossa comum dos maus
costumes..." (o.cit. p. 154) ou "o instrumento conduz às
portas do inferno" (159).
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