Associação Portuguesa O Órgão na Liturgia Cristã
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Jorge Alves Barbosa
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1. A música instrumental no culto cristão:

   Herdeiro que era da tradição cultual de sinagoga, desprovida de música instrumental, e de uma tradição musical grega em que o uso de instrumentos estava relacionado com manifestações dionisíacas, no culto cristão, a música via-se entre dois pólos opostos e em contradição com toda uma tradição litúrgica do Templo de Jerusalém veiculada pela Sagrada Escritura e com uma componente instrumental considerável. A proximidade dos cultos pagãos, onde a música instrumental tinha um lugar proeminente explica as reservas dos primeiros cristãos à música instrumental. "O emprego então feito do aulos, do saltério e das percussões nos banquetes orgiásticos e nos cultos idolátricos, ou então o emprego das trombetas nas batalhas e do órgão nos cortejos imperiais ou nos jogos de circo certamente suscitaria uma repulsa em pessoas que se sentiam portadoras de uma nova visão do mundo, estritamente crítica nos confrontos com a sociedade". [i]

            A música possivelmente transmitida pelo judaísmo, das sinagogas para a comunidade cristã primitiva, era apenas cantada. Ao mesmo tempo, os pensadores cristãos haveriam de partilhar um favor especial pelos assuntos teóricos, aliás, no seguimento da teoria musical grega, pelo que o lugar dos teóricos musicais era mais elevado que o dos instrumentistas e cantores. Não é por acaso que Santo Agostinho se apresenta, no séc V, como um dos primeiros teóricos da música e não será de estranhar que as suas opiniões não abonem muito em favor dos cantores e muito menos dos instrumentistas. Para o doutor hiponense o instrumentista é alguém que se exercita para repetir por imitação os gestos que aprendeu de outro e, repetindo-os constantemente, não é mais que um "macaco de imitação"... [ii]  Aureliano de Reomé, no séc. IX, diz que o cantor está para o teórico como o réu para o juiz, e acrescenta outras barbaridades que desembocarão no célebre dito de Guido de Arezzo (séc. XI): "entre músicos e cantores há uma enorme distância; os primeiros conhecem o que é a música ao passo que os segundos apenas a executam. Ora executar algo que não se conhece é próprio dos animais". [iii] O instrumentista era colocado ainda abaixo do cantor, principalmente porque no mundo pagão os instrumentistas tocavam sobretudo nos banquetes onde o respeito pela música seria menor que o interesse pelo vinho, sexo e outras componentes... No meio da algazarra e dos efeitos do álcool, aliado aos movimentos de dançarinas, aparece o instrumentista antigo, tocador de "aulos" (espécie de oboé), ou de "tíbia", uma espécie de flauta de osso e, por isso mesmo, conotada com a morte [iv] . Como poderia a Igreja acolher no seu seio e no seu culto pessoas e objectos conotadas com tal ambiente?

            Foi em virtude dessas conotações ambientais da música instrumental do mundo greco-romano que a Igreja primitiva não concedeu à música instrumental o lugar que tivera no culto judaico do Templo e que haveria de assumir depois. Como gostavam de referir os Padres da Igreja, e particularmente Santo Agostinho "o canto antigo cantava-se com a antiga cítara e com o saltério; o canto novo, mais digno de Deus, canta-se com uma cítara viva e com o saltério de dez cordas, os sentidos interiores e exteriores". 


[i] Cfr. EUGENIO COSTA, "sacra, musica" in DEUMM, e ainda QUASTEN, Musik und Gesang in den Kulten den Heidenisch, Munster, 1972. Já TERTULIANO no séc. III, apresenta uma das mais negativas referências aos instrumentos musicais: "... nemo denique in spectaculo ineundo prius cogitat nisi videri et videre sed tragoedo vocifarante exclamationes ille allicuius prophetae retractabit et ineter effeminati tibicinis modus psalmum secum comminiscetur" (De Spectaculis, XXV,3) [ ...e não se encontra outra intenção ao ir a um espectáculo que não seja a de ver e a de ser visto. Quando se ouve um declamador de poemas trágicos vai-se pensar ou evocar a palavra dos profetas? E ao ver os gestos efeminados do tocador de flauta vai-se evocar o canto dos salmos?..."].

[ii] No mesmo sentido vai SEVERINO BOÉCIO, um dos mais eminentes teóricos da música e que consegue fazer a síntese entre a teoria grega e a prática musical judeo cristã, na sua obra De Institutione musica, cap. XXXIII. (Cfr.  texto em G. CATTIN, La Monodia nel Medioevo, p. 216 e SOLANGE CORBIN, La Musica cristiana, p. 51-53).

[iii] Cfr. SOLANGE CORBIN, La Musica Cristiana, Ed. Jaca Book, Milano, 1983, p. 35-37.

[iv] Efectivamente, os instrumentos musicais assinalavam os mais importantes acontecimentos da sociedade pagã do Império: cortejos triunfais, jogos, festas religiosas. Sabe-se mesmo do interesse particular de alguns imperadores pela música como o caso de Nero, Tito e Domiciano. Mas a música vem igualmente ligada aos banquetes com a sua componente edonística e ao lúgubre espectáculo de sexo e sangue dos circos romanos" (cfr. RENATO CHIESA, "Roma" in DEUMM); Solange Corbin apresenta aforismas ainda mais radicais como: "o cantor na sua igreja, os instrumentistas na fossa comum dos maus costumes..." (o.cit. p. 154) ou "o instrumento  conduz às portas do inferno" (159). 


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