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3. A
construção do Órgão como instrumento para a Liturgia
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A
dimensão litúrgica da música organística a solo exprime-se na arte de
parafrasear melodias sobre textos litúrgicos conhecidos da assembleia
dos fieis, na gravidade do estilo que caracteriza a música e a
sonoridade do órgão, aliados a um sentido de grandeza e solenidade que
se foi acentuando progressivamente com o crescimento dos recursos dos
instrumentos e com a diversificação das tendências estilísticas e das
escolas de organaria europeias. Assim, a Itália faz prevalecer as
sonoridades graves e suaves de "principais" e "flautas", com uma
predominância da melodia apoiada em acompanhamentos discretos ou então
um estilo contrapontístico muito próximo da música vocal. A França
deixa-se impressionar pela variedade tímbrica e por um certo ar de
profanidade manifesto nos ritmos variados e no colorido das palhetas com
relevo para os graves e médios ("Taille") bem como dos registos
compostos, valorizando, ao mesmo tempo, a espectacularidade e grandeza
dos seus órgãos. É na Alemanha que de dá o mais alargado desenvolvimento
técnico e expressivo do órgão com a multiplicação de teclados
(correspondente a uma multiplicidade de órgãos manejados por um único
instrumentista), com o relevo conferido aos graves, através do
desenvolvimento da pedaleira autónoma e com a criação de um estilo
virtuosístico e grandioso onde pontifica a figura de Johann Sebastian
Bach.
Na Península Ibérica nota-se uma atitude um tanto diferente:
desenvolve-se a magnificência exterior das caixas artisticamente
trabalhadas em instrumentos de limitados recursos sonoros de que são
exemplo os órgãos da Sé de Braga, ou o de S. Bento, no Porto, que vemos
na imagem, mas com uma prodigiosa habilidade para conciliar a variedade
tímbrica com exíguos recursos mecânicos. Limitando o órgão a um teclado
– dois, no máximo, em casos raros - e sem pedaleira, os organeiros
ibéricos, ao utilizar a técnica construtiva do "meio registo" conseguem
realizar, com instrumentos pequenos e económicos, muito do que outras
escolas conseguiam com instrumentos enormes. Encontramos inclusivamente
instrumentos que chegam a apresentar três órgãos accionados por um único
teclado que, pela técnica do "meio registo" e por processos particulares
de acoplamento, se pode transformar num instrumento de seis teclados,
como é o caso particular do órgão da Capela da Universidade de Coimbra.
A espectacularidade e a presença de uma grande dose de profanidade
caracterizam a música organística ibérica, com a utilização, por vezes
exagerada, das palhetas e a multiplicação dos acessórios para efeitos
especiais, tanto sonoros como visuais, e um repertório que ultrapassa
muitas vezes, pelo estilo e pelos temas tratados, os limites da
gravidade que se exige num espaço sagrado.
[i]
A transformação e evolução posterior do órgão deu-se
particularmente nos países germânicos que sempre mantiveram uma prática
organística mais ou menos tradicionalista e uma escola de construtores
de órgãos, e em França onde se operou a mais importante revolução na
música e na arte organística, nomeadamente a partir da utilização dos
recursos dos órgãos construídos por Aristide Cavaillé-Coll. O séc. XIX
faz então do órgão o verdadeiro rei dos instrumentos (apesar de o título
já lhe vir de Guillaume de Machaut, no séc. XIV), ou órgão sinfónico,
enriquecendo-o a ponto de o transformar, pela potência e pelos recursos
tímbricos, numa verdadeira orquestra. É nesse contexto que se aumenta o
número de registos ultrapassando a centena, o número de tubos aponta
para a ordem das dezenas de milhar; o número de teclados, embora
mantenha a base dos três ou quatro, pode chegar mesmo a oito... No que
diz respeito ao órgão ibérico, manter-se-ão as características dos
séculos anteriores quanto a proporções e tamanho, mas multiplicando o
número dos instrumentos até chegarmos aos seis órgãos do Convento de
Mafra, expressão musical do esplendor, das ambições e também de uma
certa ingenuidade da corte de D. João V e seus sucessores.
O alargamento das
possibilidades do órgão do séc. XIX transformou-o em instrumento de
concerto e, a partir de então, foram-se construindo órgãos também nos
grandes auditórios, o que deu origem à utilização deste instrumento na
música profana, aliado à orquestra e com um repertório concertístico;
desse modo, o órgão deixou de ser um instrumento apenas litúrgico.
[ii]
O próprio repertório litúrgico haveria de se deixar envolver novamente
pela profanidade ao ponto de termos os órgãos a parafrasear árias de
ópera conhecidas ou os compositores a cultivar um estilo de
características profanas quer pelos ritmos usados, quer pelas opções
tímbricas, quer mesmo por um estilo superficial – “stile pompieristico”
- que se pode encontrar em autores como Alexandre Boëly e Louis James
Lefébure-Wély. Salva-se, neste contexto, a música de compositores
crentes e ligados à liturgia como Anton Bruckner ou César Franck, mesmo
que, em algumas obras, este se deixe levar ainda pelo mesmo estilo,
nomeadamente no “Finale”; a obra deste compositor haveria de dar origem
a uma nova escola de órgão - o órgão sinfónico - que se estenderia pelo
séc. XX. A partir de então a única novidade que a construção organística
introduziu foi ao nível da transmissão que passou de mecânica a
pneumática e, mais tarde, a eléctrica o que possibilitou a construção da
"consola" móvel; a electricidade veio a permitir também a utilização de
motores para a produção do ar.
É no contexto da produção musical para órgão do séc. XIX e
face a uma certa indefinição dos campos e à necessidade de uma renovação
da liturgia e da música sacra que, em 22 de Novembro de 1904 o Papa São
Pio X publica o célebre Motu Próprio “Tra le Sollecitudini”,
documento que se tornaria a carta magna da música sacra e iniciador de
um movimento que culminaria no Concílio Vaticano II. Nesse documento, o
santo pontífice afirma: “ainda que a música se Igreja seja
exclusivamente vocal, não obstante, permite-se a música com
acompanhamento de órgão. Em casos particulares, nos termos devidos e com
as devidas atenções poderão admitir-se outros instrumentos, mas não sem
licença do Ordinário” (n. 15). Porém, “como o canto deve sempre ter a
primazia, tanto o órgão como os demais instrumentos devem simplesmente
sustentá-lo e não abafá-lo” (n. 16). E, se no n. 17 assegura que “não
se pode antepor qualquer tipo de prelúdio nem muito menos interromper o
canto com a música do órgão”, logo no número seguinte admite que “no
acompanhamento do canto, nos prelúdios, interlúdios e demais passagens
parecidas, o órgão deve ser tocado segundo a índole do mesmo instrumento
e deve participar de todas as qualidades da música sacra anteriormente
assinaladas” (n. 18)
[iii]
As mesmas ideias são retomadas na Constituição “Divini
cultus”, um documento de Pio XI dedicado à organização do culto e
particularmente à preparação cuidada dos agentes da liturgia, incluindo
a formação nos seminários. Aí é tratado particularmente o Canto
Gregoriano como referência para a música sacra e defende-se a excelência
da música vocal no confronto com qualquer tipo de música instrumental.
Nesta, é reconhecida, mesmo assim, uma particular importância ao órgão,
nos seguintes termos: “o instrumento tradicionalmente apropriado para a
igreja é o órgão que, em razão da sua extraordinária grandeza e
majestade, foi considerado um digno complemento da liturgia, enquanto
acompanhante do canto ou, quando o coro está em silêncio, para tocar
música harmoniosa nos tempos adequados. Mas devemos confessar também
aqui a mistura do sacro e do profano tanto por culpa dos próprios
construtores de órgãos como dos executantes que, sendo partidários das
particularidades da música moderna, levam a utilização deste maravilhoso
instrumento para campos que não seriam os mais adequados para ele.
Gostaríamos de, dentro dos limites que a liturgia possibilita, encorajar
o desenvolvimento e progresso de tudo o que tem a ver com o órgão; mas
não podemos deixar de lamentar o facto de assistirmos a novas tentativas
de introdução de determinados tipos de música que a Igreja com razão
proibiu no passado, ou novas tentativas de introduzir um espírito
profano na igreja, através de formas modernas de música; formas que, se
começarem a ser introduzidas, a Igreja terá novamente que as condenar.
Deixemos ressoar nas nossas Igrejas aquela música de órgão que dá
expressão à majestade dos próprios templos e que dá alento à sacralidade
dos ritos; nesse sentido, a arte poderá prosperar novamente, tanto para
os que constroem os órgãos como para os que os executam, e prestar um
serviço efectivo à sagrada liturgia”.
[iv]
Mesmo assim, o seu sucessor, Pio XII, na Encíclica
“Mediator Dei”, apresentava uma visão mais aberta no que respeita às
aportações da música moderna, embora não se refira expressamente ao
órgão. Efectivamente diz: “Não se pode, todavia exigir que a música e o
canto moderno devam absolutamente ser excluídos do culto católico. Pelo
contrário, se nada têm de profano ou de inconveniente para a santidade
do lugar ou da acção sagrada, nem derivam de uma vã procura de efeitos
extraordinários ou insólitos, então é certamente necessário abrir-lhes
as portas das nossas igrejas, podendo ambas contribuir e não pouco para
o esplendor dos ritos sagrados, para a elevação dos espíritos e,
juntamente, para a verdadeira devoção”
[v]
No seguimento de tal doutrina a Encíclica “Musicae Sacrae Disciplina”
do mesmo Pio XII, depois de chamar a atenção para a encíclica
anterior no que respeita à liturgia, afirma concretamente que as normas
respeitantes à música sacra em geral “devem ser aplicadas ao uso do
órgão ou de outros instrumentos. Entre os instrumentos que encontram um
lugar na Igreja, o órgão ocupa a verdadeiramente a posição principal,
desde o momento em que é especialmente adequado ao canto e à liturgia
sagrada. Ele acrescenta um maravilhoso esplendor e uma especial
magnificência às cerimónias da Igreja. Move as almas para a fé pela
grandeza e pela suavidade da sua sonoridade. Ele tem a capacidade de dar
às mentes quase uma alegria celeste e de as elevar poderosamente para
Deus e para as coisas santas”
[vi]
[i]
Na música italiana poderemos apresentar a música de Girolamo
Frescobaldi, de Gabrieli, Claudio Merulo e Doménico Zipoli. O
apurado emprego do "principais" e "flautas" bem como da "voce umana"
é o testemunho de uma sonoridade particular. As "Suites" de Louis
Nicolás Clérambault ou de Nicolás le Bègue, as Missas de François
Couperin ou os "Natais" de L.C.Daquin dão uma imagem da variedade e
riqueza tímbrica do órgão francês. Na Alemanha, Dietrich Buxtehude e
Johan Sebastian Bach são suficientemente conhecidos para
necessitarem de apresentações. O repertório ibérico poderá ser
representado pelos "Tentos" de Manuel Rodrigues Coelho e as
"Batalhas" de Pedro de Araújo, para citarmos apenas os portugueses.
No séc. XVIII, a distinção entre o repertório cravístico e
organístico não é muito definida, bem como o ambiente inerente a
essa mesma música. José António Carlos de Seixas com as suas
"Toccatas" ou "Sonatas" é um claro exemplo desse repertório que
apesar de tudo encontra paralelo nas suas referências italianas como
G.B. Martini, Baldassare Gallupi e outros.
[ii]
Na tradição romântica alemã, poderemos apresentar Mendelssohn, com
as "Sonatas", Franz Liszt e Robert Schumann, Johannes Brahms e Max
Reger que, seguindo a tradição bachiana tanto quanto a temáticas
como a formas musicais, exploram o órgão dentro das características
da espectacularidade romântica; Cesar Franck , ao empregar o termo
"Sinfonia" dá origem a uma tradição organística que dentro de um
espírito religioso utiliza meios de uma dimensão mais profana com
continuadores como Alexandre Guilmant, Leon Boellmann, Charles Marie
Widor, Louis Vierne, Marcel Dupré e Olivier Messiaen para além de
muitos outros. A Itália perde a sua tradição organística, reatando-a
mais tarde com Marco Enrico Bossi como instrumentista e compositor
dentro de um espírito romântico, numa acção e obra que seria
continuada por Raffaele Manari e a Escola do Pontifício Instituto de
Música Sacra de Roma. Os casos isolados em Espanha e Portugal não se
podem considerar como factores verdadeiros da continuidade de uma
tradição organística. Só hoje em dia parece tentar-se reorganizar
alguma coisa...
[iii]
O mesmo Motu Proprio “Tra le sollecitudini” é ainda
mais específico quanto ao uso de instrumentos musicais na liturgia
ao dizer expressamente que “está proibido nas igrejas o uso do piano
como também de todos os instrumentos fragorosos ou ligeiros como o
tambor, os gongs, os pratos e outros instrumentos semelhantes” (n.
19) assim como “20. Está rigorosamente proibido que as chamadas
bandas de música toquem nas igrejas e só em casos especiais, com o
consentimento do Ordinário, será permitido admitir um números
judiciosamente seleccionado, reduzido e proporcionado ao ambiente,
de instrumentos de sopro que vão acompanhar o canto ou executar
composições, com música escrita em estilo grave, conveniente e em
tudo parecida à música do órgão (n. 20).
[iv]
PIO XI, Const. “Divini Cultus” (20 de Dezembro de 1928)
[v]
PIO XII, Encíclica “Mediator Dei” de 20 de Novembro de 1947.
[vi]
PIO XII, Encíclica “Musicae Sacrae Disciplina” de 25 de
Dezembro de 1955. Veja-se que o Concílio Vaticano II, quando fala do
órgão na liturgia e da sua excelência, se limita a transcrever
exactamente estas últimas palavras da encíclica de Pio XII.
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