Associação Portuguesa O Órgão na Liturgia Cristã
Amigos do Órgão
 

Prt57- Porto-S. Bento da Vitória

Jorge Alves Barbosa
outros artigos:
ORGÄOS NA DIOCESE

DE VIANA DO CASTELO

TRÍPTICO LITÚRGICO

MANUEL FARIA (1916-1983)

SAGRADA CONGREGAÇÃO

PARA O CULTO DIVINO

"CONCERTOS NAS IGREJAS"

O ÓRGÃO NA LITURGIA CRISTÃ
A REGISTAÇÃO DO ÓRGÃO LITÚRGICO
CONGRESSO “O ÓRGÃO E A LITURGIA, HOJE”
3. A construção do Órgão como instrumento para a Liturgia

   A dimensão litúrgica da música organística a solo exprime-se na arte de parafrasear melodias sobre textos litúrgicos conhecidos da assembleia dos fieis, na gravidade do estilo que caracteriza a música e a sonoridade do órgão, aliados a um sentido de grandeza e solenidade que se foi acentuando progressivamente com o crescimento dos recursos dos instrumentos e com a diversificação das tendências estilísticas e das escolas de organaria europeias. Assim, a Itália faz prevalecer as sonoridades graves e suaves de "principais" e "flautas", com uma predominância da melodia apoiada em acompanhamentos discretos ou então um estilo contrapontístico muito próximo da música vocal. A França deixa-se impressionar pela variedade tímbrica e por um certo ar de profanidade manifesto nos ritmos variados e no colorido das palhetas com relevo para os graves e médios ("Taille") bem como dos registos compostos, valorizando, ao mesmo tempo, a espectacularidade e grandeza dos seus órgãos. É na Alemanha que de dá o mais alargado desenvolvimento técnico e expressivo do órgão com a multiplicação de teclados (correspondente a uma multiplicidade de órgãos manejados por um único instrumentista), com o relevo conferido aos graves, através do desenvolvimento da pedaleira autónoma e com a criação de um estilo virtuosístico e grandioso onde pontifica a figura de Johann Sebastian Bach.

            Na Península Ibérica nota-se uma atitude um tanto diferente: desenvolve-se a magnificência exterior das caixas artisticamente trabalhadas em instrumentos de limitados recursos sonoros de que são exemplo os órgãos da Sé de Braga, ou o de S. Bento, no Porto, que vemos na imagem, mas com uma prodigiosa habilidade para conciliar a variedade tímbrica com exíguos recursos mecânicos. Limitando o órgão a um teclado – dois, no máximo, em casos raros - e sem pedaleira, os organeiros ibéricos, ao utilizar a técnica construtiva do "meio registo" conseguem realizar, com instrumentos pequenos e económicos, muito do que outras escolas conseguiam com instrumentos enormes. Encontramos inclusivamente instrumentos que chegam a apresentar três órgãos accionados por um único teclado que, pela técnica do "meio registo" e por processos particulares de acoplamento, se pode transformar num instrumento de seis teclados, como é o caso particular do órgão da Capela da Universidade de Coimbra. A espectacularidade e a presença de uma grande dose de profanidade caracterizam a música organística ibérica, com a utilização, por vezes exagerada, das palhetas e a multiplicação dos acessórios para efeitos especiais, tanto sonoros como visuais, e um repertório que ultrapassa muitas vezes, pelo estilo e pelos temas tratados, os limites da gravidade que se exige num espaço sagrado. [i]

            A transformação e evolução posterior do órgão deu-se particularmente nos países germânicos que sempre mantiveram uma prática organística mais ou menos tradicionalista e uma escola de construtores de órgãos, e em França onde se operou a mais importante revolução na música e na arte organística, nomeadamente a partir da utilização dos recursos dos órgãos construídos por Aristide Cavaillé-Coll. O séc. XIX faz então do órgão o verdadeiro rei dos instrumentos (apesar de o título já lhe vir de Guillaume de Machaut, no séc. XIV), ou órgão sinfónico, enriquecendo-o a ponto de o transformar, pela potência e pelos recursos tímbricos, numa verdadeira orquestra. É nesse contexto que se aumenta o número de registos ultrapassando a centena, o número de tubos aponta para a ordem das dezenas de milhar; o número de teclados, embora mantenha a base dos três ou quatro, pode chegar mesmo a oito... No que diz respeito ao órgão ibérico, manter-se-ão as características dos séculos anteriores quanto a proporções e tamanho, mas multiplicando o número dos instrumentos até chegarmos aos seis órgãos do Convento de Mafra, expressão musical do esplendor, das ambições e também de uma certa ingenuidade da corte de D. João V e seus sucessores.

                O alargamento das possibilidades do órgão do séc. XIX transformou-o em instrumento de concerto e, a partir de então, foram-se construindo órgãos também nos grandes auditórios, o que deu origem à utilização deste instrumento na música profana, aliado à orquestra e com um repertório concertístico; desse modo, o órgão deixou de ser um instrumento apenas litúrgico. [ii] O próprio repertório litúrgico haveria de se deixar envolver novamente pela profanidade ao ponto de termos os órgãos a parafrasear árias de ópera conhecidas ou  os compositores a cultivar um estilo de características profanas quer pelos ritmos usados, quer pelas opções tímbricas, quer mesmo por um estilo superficial – “stile pompieristico” - que se pode encontrar em autores como Alexandre Boëly e Louis James Lefébure-Wély. Salva-se, neste contexto, a música de compositores crentes e ligados à liturgia como Anton Bruckner ou César Franck, mesmo que, em algumas obras, este se deixe levar ainda pelo mesmo estilo, nomeadamente no “Finale”; a obra deste compositor haveria de dar origem a uma nova escola de órgão - o órgão sinfónico - que se estenderia pelo séc. XX. A partir de então a única novidade que a construção organística introduziu foi ao nível da transmissão que passou de mecânica a pneumática e, mais tarde, a eléctrica o que possibilitou a construção da "consola" móvel; a electricidade veio a permitir também a utilização de motores para a produção do ar.

        É no contexto da produção musical para órgão do séc. XIX e face a uma certa indefinição dos campos e à necessidade de uma renovação da liturgia e da música sacra que, em 22 de Novembro de 1904 o Papa São Pio X publica o célebre Motu Próprio “Tra le Sollecitudini”, documento que se tornaria a carta magna da música sacra e iniciador de um movimento que culminaria no Concílio Vaticano II. Nesse documento, o santo pontífice afirma: “ainda que a música se Igreja seja exclusivamente vocal, não obstante, permite-se a música com acompanhamento de órgão. Em casos particulares, nos termos devidos e com as devidas atenções poderão admitir-se outros instrumentos, mas não sem licença do Ordinário” (n. 15). Porém, “como o canto deve sempre ter a primazia, tanto o órgão como os demais instrumentos devem simplesmente sustentá-lo e não abafá-lo” (n. 16). E, se  no n. 17 assegura que “não se pode antepor qualquer tipo de prelúdio nem muito menos interromper o canto com a música do órgão”,  logo no número seguinte admite que “no acompanhamento do canto, nos prelúdios, interlúdios e demais passagens parecidas, o órgão deve ser tocado segundo a índole do mesmo instrumento e deve participar de todas as qualidades da música sacra anteriormente assinaladas” (n. 18) [iii]

            As mesmas ideias são retomadas na Constituição “Divini cultus”, um documento de Pio XI dedicado à organização do culto e particularmente à preparação cuidada dos agentes da liturgia, incluindo a formação nos seminários. Aí é tratado particularmente o Canto Gregoriano como referência para a música sacra e defende-se a excelência da música vocal no confronto com qualquer tipo de música instrumental. Nesta, é reconhecida, mesmo assim, uma particular importância ao órgão, nos seguintes termos: “o instrumento tradicionalmente apropriado para a igreja é o órgão que, em razão da sua extraordinária grandeza e majestade, foi considerado um digno complemento da liturgia, enquanto acompanhante do canto ou, quando o coro está em silêncio, para tocar música harmoniosa nos tempos adequados. Mas devemos confessar também aqui a mistura do sacro e do profano tanto por culpa dos próprios construtores de órgãos como dos executantes que, sendo partidários das particularidades da música moderna, levam a utilização deste maravilhoso instrumento para campos que não seriam os mais adequados para ele. Gostaríamos de, dentro dos limites que a liturgia possibilita, encorajar o desenvolvimento e progresso de tudo o que tem a ver com o órgão; mas não podemos deixar de lamentar o facto de assistirmos a novas tentativas de introdução de  determinados tipos de música que a Igreja com razão proibiu no passado, ou novas tentativas de introduzir um espírito profano na igreja, através de formas modernas de música; formas que, se começarem a ser introduzidas, a Igreja terá novamente que as condenar. Deixemos ressoar nas nossas Igrejas aquela música de órgão que dá expressão à majestade dos próprios templos e que dá alento à sacralidade dos ritos; nesse sentido, a arte poderá prosperar novamente, tanto para os que constroem os órgãos como para os que os executam, e prestar um serviço efectivo à sagrada liturgia”. [iv]

            Mesmo assim, o seu sucessor, Pio XII, na Encíclica “Mediator Dei”, apresentava uma visão mais aberta no que respeita às aportações da música moderna, embora não se refira expressamente ao órgão. Efectivamente diz: “Não se pode, todavia exigir que a música e o canto moderno devam absolutamente ser excluídos do culto católico. Pelo contrário, se nada têm de profano ou de inconveniente para a santidade do lugar ou da acção sagrada, nem derivam de uma vã procura de efeitos extraordinários ou insólitos, então é certamente necessário abrir-lhes as portas das nossas igrejas, podendo ambas contribuir e não pouco para o esplendor dos ritos sagrados, para a elevação dos espíritos e, juntamente, para a verdadeira devoção” [v] No seguimento de tal doutrina a Encíclica “Musicae Sacrae Disciplina” do mesmo Pio XII, depois de chamar a atenção para a encíclica anterior no que respeita à liturgia, afirma concretamente que as normas respeitantes à música sacra em geral “devem ser aplicadas ao uso do órgão ou de outros instrumentos. Entre os instrumentos que encontram um lugar na Igreja, o órgão ocupa a verdadeiramente a posição principal, desde o momento em que é especialmente adequado ao canto e à liturgia sagrada. Ele acrescenta um maravilhoso esplendor e uma especial magnificência às cerimónias da Igreja. Move as almas para a fé pela grandeza e pela suavidade da sua sonoridade. Ele tem a capacidade de dar às mentes quase uma alegria celeste e de as elevar poderosamente para Deus e para as coisas santas” [vi]


[i] Na música italiana poderemos apresentar a música de Girolamo Frescobaldi, de Gabrieli, Claudio Merulo e Doménico Zipoli. O apurado emprego do "principais" e "flautas" bem como da "voce umana" é o testemunho de uma sonoridade particular. As "Suites" de Louis Nicolás Clérambault ou de Nicolás le Bègue, as Missas de François Couperin ou os "Natais" de L.C.Daquin dão uma imagem da variedade e riqueza tímbrica do órgão francês. Na Alemanha, Dietrich Buxtehude e Johan Sebastian Bach são suficientemente conhecidos para necessitarem de apresentações. O repertório ibérico poderá ser representado pelos "Tentos" de Manuel Rodrigues Coelho e as "Batalhas" de Pedro de Araújo, para citarmos apenas os portugueses. No séc. XVIII, a distinção entre o repertório cravístico e organístico não é muito definida, bem como o ambiente inerente a essa mesma música. José António Carlos de Seixas com as suas "Toccatas" ou "Sonatas" é um claro exemplo desse repertório que apesar de tudo encontra paralelo nas suas referências italianas como G.B. Martini, Baldassare Gallupi e outros.

[ii] Na tradição romântica alemã, poderemos apresentar Mendelssohn, com as "Sonatas", Franz Liszt e Robert Schumann, Johannes Brahms e Max Reger que, seguindo a tradição bachiana tanto quanto a temáticas como a formas musicais, exploram o órgão dentro das características da espectacularidade romântica; Cesar Franck , ao empregar o termo "Sinfonia" dá origem a uma tradição organística que dentro de um espírito religioso utiliza meios de uma dimensão mais profana com continuadores como Alexandre Guilmant, Leon Boellmann, Charles Marie Widor, Louis Vierne, Marcel Dupré e Olivier Messiaen para além de muitos outros. A Itália perde a sua tradição organística, reatando-a mais tarde com Marco Enrico Bossi como instrumentista e compositor dentro de um espírito romântico, numa acção e obra que seria continuada por Raffaele Manari e a Escola do Pontifício Instituto de Música Sacra de Roma. Os casos isolados em Espanha e Portugal não se podem considerar como factores verdadeiros da continuidade de uma tradição organística. Só hoje em dia parece tentar-se reorganizar alguma coisa...

[iii] O mesmo Motu Proprio “Tra le sollecitudini” é ainda mais específico quanto ao uso de instrumentos musicais na liturgia ao dizer expressamente que “está proibido nas igrejas o uso do piano como também de todos os instrumentos fragorosos ou ligeiros como o tambor, os gongs, os pratos e outros instrumentos semelhantes” (n. 19) assim como “20. Está rigorosamente proibido que as chamadas bandas de música toquem nas igrejas e só em casos especiais, com o consentimento do Ordinário, será permitido admitir um números judiciosamente seleccionado, reduzido e proporcionado ao ambiente, de instrumentos de sopro que vão acompanhar o canto ou executar composições, com música escrita em estilo grave, conveniente e em tudo parecida à música do órgão (n. 20).

[iv] PIO XI, Const. “Divini Cultus” (20 de Dezembro de 1928)

[v] PIO XII, Encíclica “Mediator Dei” de 20 de Novembro de 1947.

[vi] PIO XII, Encíclica “Musicae Sacrae Disciplina” de 25 de Dezembro de 1955. Veja-se que o Concílio Vaticano II, quando fala do órgão na liturgia e da sua excelência, se limita a transcrever exactamente estas últimas palavras da encíclica de Pio XII.


Lista geral de organistas
Concertos Revista artigos 1 2 3 4 5 6