Associação Portuguesa O Órgão na Liturgia Cristã
Amigos do Órgão
 
Jorge Alves Barbosa
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ORGÄOS NA DIOCESE

DE VIANA DO CASTELO

TRÍPTICO LITÚRGICO

MANUEL FARIA (1916-1983)

SAGRADA CONGREGAÇÃO

PARA O CULTO DIVINO

"CONCERTOS NAS IGREJAS"

A REGISTAÇÃO DO ÓRGÃO LITÚRGICO
CONGRESSO “O ÓRGÃO E A LITURGIA, HOJE”
5. O Órgão na liturgia, hoje:

   De acordo com as orientações do Concílio Vaticano II, na Const. “Sacrosanctum Concilium” bem como as orientações dimanadas da Instr. “Musicam sacram” com que abrimos este artigo, a função litúrgica do órgão é definida como "acompanhamento do canto", apoio das vozes que cantam, ajudar à unidade da assembleia, sem que jamais possa encobrir as vozes e muito menos a voz do Presidente da celebração, o que denota uma ligação muito próxima às orientações já presentes no Motu Próprio “Tra le sollecitudini” e nos documentos pontifícios que se lhe seguiram. Por isso mesmo, é completamente desaconselhado o emprego de qualquer instrumento durante a recitação da Oração Eucarística, mesmo que em outros tempos tal prática fosse aceitável e até inspiradora de repertório considerável, porque então a mesma Oração era proclamada "sumissa voce". O emprego do instrumento a solo é limitado ao princípio da celebração e ao fim e eventualmente poderá ser eficaz o toque a solo durante a comunhão dos fiéis e durante o Ofertório. Estas características e exigências da actuação do órgão na liturgia implicam, como é bom de ver, que o próprio organista seja, para além do mais, dotado de uma profunda formação cristã e de uma grande vivência, experiência e sensibilidade litúrgica, ao mesmo tempo que deve colaborar com todos os outros intervenientes na celebração a começar pelo seu Presidente.

            A relação muito particular e directa do órgão com a assembleia litúrgica é definida, nos dias de hoje, pela colocação do instrumento no espaço litúrgico. Efectivamente não se trata de uma alfaia qualquer, mas deve, pelo lugar que ocupa como pela própria aparência e enquadramento estético, representar claramente a sua função quer relativamente ao coro que canta quer relativamente à assembleia. É por isso que a orientação da Igreja aponta para que "o órgão e outros instrumentos musicais estejam no seu próprio lugar, ou seja, onde possam ajudar os cantores e o povo e onde, quando ouvidos a solo, possam ser escutados por todos" (IGMR, 275). Essa importância vem-lhe tanto do espaço e função dentro da liturgia como pela sua dimensão e colocação no próprio contexto, pelo que o seu lugar deve merecer a atenção particular dos próprios arquitectos. O toque a solo deve, através da interpretação de um repertório sério e adequado, conduzir o ouvinte a uma sensação de força misteriosa que faça elevar as nossas mentes a uma participação de escuta, mas certamente activa, tanto dentro como fora das celebrações litúrgicas. Poderíamos mesmo dizer que a função do órgão no espaço sagrado transcende as dimensões da liturgia para se tornar um veículo que aponta para a solenidade e a devoção, o recolhimento e a elevação espiritual e artística, ou seja, para o estabelecimento de um diálogo entre a oração, a fé e a cultura. Entrar numa igreja em silêncio ou entrar numa igreja onde soa a voz de um órgão é algo de diferente, tal como a própria disposição do instrumento no espaço, pelas suas dimensões e características de construção, tende a elevar o olhar como o pensamento para as alturas. Essa é uma das dimensões que nos grandes órgãos de tubos permanecem ainda insubstituíveis. Finalmente, o carácter sacro do órgão como instrumento preferencialmente litúrgico deve implicar um uso moderado e limitado à mesma liturgia no que respeita a repertório ou mesmo no que respeita a estilo de execução. Só assim evitaremos situações de profanidade que não só podem trair a seriedade do espaço sagrado como também a gravidade e seriedade de um instrumento que a Igreja cristã assumiu e consagrou como seu.

            É neste sentido que, em jeito de sugestão, apontaríamos agora algumas ideias sobre a intervenção do órgão na liturgia, nas condições em que ela se desenvolve nos dias de hoje, tendo em conta que pouco ou nada vem sendo escrito sobre o assunto de uma forma sistemática. Acontece que o repertório de música de órgão relacionado com a liturgia actual apresenta como referência a utilização de melodias gregorianas, com relevo para  autores como Hermann Schroeder na Alemanha ou Maurice Duruflé na França, ou a utilização de melodias de Corais como acontece particularmente com os autores alemães Johannes Nepomuk. David ou Joseph Ahrens. Ora admitir que a música litúrgica para órgão se define apenas em função de uma proximidade ao Canto Gregoriano ou aos temas de Coral parece-nos ser francamente redutor. Por outro lado, se “a dimensão litúrgica da música organística a solo se encontra e se exprime na arte de parafrasear melodias sobre textos litúrgicos conhecidos da assembleia dos fiéis”, hoje em dia, as melodias gregorianas não são assim tão conhecidas dos fiéis e, muito menos, o são as melodias de Coral no que respeita à maioria das nossas assembleias em Portugal, salvas as raras excepções de algumas melodias que se popularizaram entre nós como o salmo calvinista “Povo teu somos” ou os Corais “Misteriosa madrugada”, “Senhor meu bom Jesus” e pouco mais… Para além da utilização de melodias gregorianas, seria de apontar, por exemplo, o estilo modal e a técnica preferencialmente contrapontística como recursos que permanecem fortemente ligadas ao ambiente litúrgico e sacro, mesmo quando utilizados em obras de conteúdo profano como acontece na ópera, na sinfonia ou mesmo no quarteto de cordas [1]. A isso se deverá acrescentar  “a gravidade do estilo que caracteriza a música e a sonoridade do órgão, aliada a um sentido de grandeza e solenidade” a utilizar conforme as circunstâncias e o sentido particular de cada celebração. Em concreto, apresentaríamos agora algumas ideias para a caracterização da música litúrgica para órgão. 

5. 1 – As possibilidades técnicas do instrumento:

Como dizíamos anteriormente, a primeira questão a ter em conta são as características técnicas e as possibilidades do instrumento; se queremos um instrumento apenas de acompanhamento de um coro, bastar-nos-ia um simples órgão positivo, mas se pretendemos acompanhar uma assembleia considerável e queremos, por assim dizer, “puxar por ela”, dar-lhe a dimensão de um canto de aclamação como uma Aleluia, criar o clima para um canto de entrada, etc., não poderemos limitar-nos às possibilidades de um pequeno instrumento; ou seja, o carácter de um canto pode e deve ser definido pelo próprio órgão e por isso é necessário que este disponha de algumas possibilidades. Mesmo as simples respostas da assembleia litúrgica exigem um tratamento diferente: por exemplo, o “Ámen” que conclui a oração colecta da missa não é o mesmo “Ámen” que termina a doxologia final da Oração Eucarística. Para tocar a solo exigem-se algumas possibilidades, sobretudo de diálogo de timbres, o que se pode conseguir com a registação diferente em teclados diferentes; um registo de palheta pode ajudar bastante, a possibilidade de contar com uma “sesquiáltera” ou um “cornetto” ajuda também, nomeadamente quando se parafraseiam melodias litúrgicas. Não poderemos conseguir grande coisa apenas com um teclado e limitados aos registos fundamentais por muitas que sejam as possibilidades dos mesmos. E muito mais que se poderia dizer…

5.2 – A performance do organista litúrgico

É evidente que a eficácia da acção do organista litúrgico não depende apenas de conhecer as melodias gregorianas ou mesmo de saber improvisar sobre as melodias dos cantos propostos para o coro e assembleia. Como já acenámos acima, o simples acompanhamento da assembleia ou do coro implica registações diferentes; mesmo a execução de um Salmo Responsorial pode exigir algo de muito empenhativo neste campo, em função de vários factores: a amplitude do espaço litúrgico desde uma simples capela ao espaço de uma catedral; o tempo litúrgico, nomeadamente a diferença entre Advento e Natal ou entre a Quaresma e Páscoa; o próprio momento celebrativo, desde a gravidade e sobriedade de um acto penitencial ao carácter jubiloso de um Aleluia ou do Sanctus; os participantes na celebração e a sua relação com o espaço: a mesma igreja cheia exige por parte do organista um tratamento diferente do da igreja quase vazia. No que diz respeito à execução e selecção do repertório muito se poderia dizer, mas este deverá ser apresentado em função do tempo de que se dispõe, em função do momento da celebração: não se vai colocar um coral de grandes proporções num ofertório que, por natureza, é breve nem se vai executar, num momento de meditação, uma obra de carácter solene, etc. Um Prelúdio para Órgão pode ter lugar como preparação de uma celebração litúrgica, antes do canto de entrada enquanto que uma Fuga, nomeadamente se for em movimento vivo, se enquadrará muito bem num final, substituindo mesmo o cântico; ou seja, a celebração vem a ser integrada entre o Prelúdio e a Fuga. Por seu lado, a improvisação deverá obedecer às mesmas regras: uma coisa é um “prelúdio” que propõe e anuncia o carácter de um canto, por exemplo de entrada ou de comunhão ou que acompanha o cantor do Salmo enquanto se dirige ao ambão; outra coisa é um “interlúdio”, possibilidade a ter em conta nos versículos do Salmo Responsorial ou, de uma forma particular durante os cânticos de comunhão que pode, além do mais, servir para um certo descanso dos cantores, sem distrair do mesmo cântico ou do que se está a passar; não deve, por isso mesmo, afastar-se do carácter do mesmo canto que acompanha; outra coisa é um “postlúdio”: um postlúdio do canto de entrada, enquanto se faz uma incensação, por exemplo, e com o qual se prepara os fiéis para o início da celebração, é diferente do de um canto de comunhão que acompanha já o silêncio interior dos comungantes e, mais ainda, é diferente do postlúdio de um canto final que constitui a conclusão da celebração que, se tiver sido especialmente festiva, deverá mesmo ser mais exuberante e tocatístico.

5.3 – Integração do Repertório organístico na Liturgia:

Já anteriormente nos inserimos nesta questão. Há, de facto, muito do repertório organístico que poderá ser enquadrado em certos momentos da liturgia, alguns dos quais lhe deram mesmo origem: versos, elevações, tocatas frescobaldianas, etc. poderão preencher capazmente alguns momentos como ofertório ou pós-comunhão; da mesma forma que se poderá incluir, num ofertório, um motete solene, também uma obra de carácter preferencialmente contrapontístico e solene, como certas obras românticas, poderá preencher esse momento, nomeadamente quando este se alonga, por exemplo, com incensação. Salvo estas excepções, é de proferir a improvisação sobre um canto verdadeiramente significativo da celebração ou do tempo litúrgico em questão; o repertório deixar-se-á para o “antes” e o “depois” da celebração. Está fora de questão, como se sabe, a execução de órgão a solo nos tempos de Advento e Quaresma e durante as orações do celebrante. Historicamente, não sabemos muito sobre o efectivo enquadramento litúrgico do repertório ibérico para órgão, mas hoje poderíamos acertar alguns dos Tentos de meio registo em momentos mais tranquilos, alguns dos Tentos mais longos como prelúdios da celebração e não destoaria de certos tempos litúrgicos a execução de uma Batalha como conclusão da celebração, nomeadamente em tempo de Natal ou Páscoa. Mais fácil seria introduzir pequenas peças sobre melodias gregorianas como Versos, nomeadamente aqueles que são elaborados sobre hinos ou outras obras construídas sobre as antífonas marianas: “Ave maris Stella”, “Salve Regina”, “Ave Maria”, etc.

5. 4. A dimensão para-litúrgica do concerto espiritual

“Outro facto importante é constituído pela iniciativa dos concertos espirituais assim designados porque a música executada pode ser considerada como música religiosa em virtude do tema tratado, do texto que as melodias revestem, do clima no qual as execuções são realizadas. Em certos casos, estes concertos podem incluir leituras, orações ou momentos de silêncio. Em razão da forma que os caracteriza, tais concertos podem ser mesmo designados como “pia exercitia”. É assim que reza o documento da Sagrada Congregação para o Culto Divino sobre “Concertos nas Igrejas” (n. 2). O “concerto espiritual”, que pode ser elevado à dimensão de para-liturgia, é efectivamente uma das possibilidades de apresentação de muito do repertório organístico de todos os tempos; uma oportunidade, aliás, de lhe dar um enquadramento parecido àquele para o qual foi criado. Pessoalmente, tenho feito, por diversas vezes, essa experiência e, procuro dar mesmo esse carácter aos concertos que faço, como se pode ver pelos respectivos programas, nomeadamente em tempos litúrgicos fortes como Natal, Quaresma e Páscoa, através da escolha de um repertório não só alusivo, mas também apoiado em textos que melhor o façam compreender; poderemos contar com a ajuda preciosa dos Corais e respectivo texto, contamos com a existência de textos bíblicos referentes aos memos temas, um pouco ao jeito de Olivier Messiaen, com os textos de outros cantos litúrgicos ou até de orações. Um contributo fundamental e acessível para esse efeito pode ser dado pela orientação litúrgico-temporal do Orgelbüchlein de J. S. Bach, complementado pelos comentários a todos os Corais para Órgão do mesmo autor, feitos por Jacques Chailley em Les Chorals pour Orgue de J.S. Bach ou por muitas outras obras sobre música de órgão. A este repertório poder-se-á acrescentar outro do género das Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau ou mesmo a perspectiva moralizante das Batalhas, para não falarmos já na dimensão teológico-trinitária do Prelúdio e Tripla Fuga de Bach…Esse mesmo repertório poderá ser enquadrado por outro, não especificamente de temática religiosa ou litúrgica, mas que lhe pode servir de suporte: Prelúdios, Tocatas, Fantasias e Fugas, etc.

Os recursos do repertório organístico de temática religiosa são imensos, pelo que se exige uma grande dose de bom gosto na respectiva selecção; é fundamental contar-se com alguma sensibilidade e conhecimentos de ordem litúrgica e mesmo teológica: com efeito, não estou a ver um concerto dedicado à Paixão de Cristo a começar com uma Tocata de Bach, mas o mesmo concerto já poderia começar com alguns dos Prelúdios de Bach, Buxtehude ou outro… Da mesma forma não entenderia que um organista apresentasse, num concerto em tempo de Natal, as Variações “Weinen Klagen” de Liszt, ou algum dos Corais de Bach relacionados com a Paixão Jesus Cristo, como não entenderia a apresentação de La Nativité du Seigneur de Messiaen ou uma Pastorale num concerto durante a Quaresma. Este é um dos aspectos em que a dimensão pedagógica dos concertos de órgão, particularmente nas nossas igrejas, muito poderá ser valorizada, para o que deverão ser formados não só os organistas como os próprios responsáveis pela programação dos concertos. Para um melhor aproveitamento nesse sentido, muito poderão ajudar as notas de comentário a colocar no programa de mão, para além dos textos que informam as peças de dimensão mais litúrgica, textos esses que, em muitos casos, poderão, com considerável proveito, ser lidos durante o concerto. Para além do mais, isso dará tempo para o executante registar a próxima peça ou mesmo para respirar um pouco…

Com uma atenção particular a estes pormenores, poder-se-á valorizar infinitamente o simples concerto de órgão e respeitar aquele carácter de gravidade e respeito que a própria Igreja pretende ver guardado nos espaços sagrados, tal como vem referido no documento já citado. Estas ideias poderão servir ainda como orientação na escolha do repertório a preparar por parte dos organistas, pois, para além da fruição artística e do desenvolvimento técnico que são sempre importantes para um instrumentista, no momento de escolher e preparar novo repertório, o mais importante é preparar material que possa, um dia, ter utilidade para outros, seja no contexto de uma celebração litúrgica, seja num concerto realizado no espaço sagrado. [2]


[1] No campo da ópera poderíamos encontrar vários exemplos, mas ocorre-me agora O Diálogo das Carmelitas de F. Poulenc; no campo da Sinfonia a Sinfonia Litúrgica de Arthur Honnegger e também uma das Sinfonias de Luís de Freitas Branco; no campo do Quarteto de Cordas, a modalidade e estilo litúrgico é já empregue por Beethoven no Quarteto op. 132, na “Canção oferecida à divindade, emmodo lídio”.

[2] Já depois de termos escrito estas linhas, tivemos acesso a um notável artigo de Franco Caporali, organista da Catedral de Cremona, intitulado “Organo e Liturgia”.  O mais curioso é que, de uma outra forma, acaba por apontar as mesmas ideias que apresentamos aqui na parte final ao tratar especificamete do órgão na liturgia hoje. Pode-se consultar o mesmo artigo bem como outros subsídios em www.organisti.it .


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