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De acordo com as orientações do Concílio Vaticano II, na Const.
“Sacrosanctum Concilium” bem como as orientações dimanadas da
Instr. “Musicam sacram” com que abrimos este artigo, a função
litúrgica do órgão é definida como "acompanhamento do canto", apoio das
vozes que cantam, ajudar à unidade da assembleia, sem que jamais possa
encobrir as vozes e muito menos a voz do Presidente da celebração, o que
denota uma ligação muito próxima às orientações já presentes no Motu
Próprio “Tra le sollecitudini” e nos documentos pontifícios que se
lhe seguiram. Por isso mesmo, é completamente desaconselhado o emprego
de qualquer instrumento durante a recitação da Oração Eucarística, mesmo
que em outros tempos tal prática fosse aceitável e até inspiradora de
repertório considerável, porque então a mesma Oração era proclamada
"sumissa voce". O emprego do instrumento a solo é limitado ao princípio
da celebração e ao fim e eventualmente poderá ser eficaz o toque a solo
durante a comunhão dos fiéis e durante o Ofertório. Estas
características e exigências da actuação do órgão na liturgia implicam,
como é bom de ver, que o próprio organista seja, para além do mais,
dotado de uma profunda formação cristã e de uma grande vivência,
experiência e sensibilidade litúrgica, ao mesmo tempo que deve colaborar
com todos os outros intervenientes na celebração a começar pelo seu
Presidente.
A relação muito particular e directa do órgão com a
assembleia litúrgica é definida, nos dias de hoje, pela colocação do
instrumento no espaço litúrgico. Efectivamente não se trata de uma
alfaia qualquer, mas deve, pelo lugar que ocupa como pela própria
aparência e enquadramento estético, representar claramente a sua função
quer relativamente ao coro que canta quer relativamente à assembleia. É
por isso que a orientação da Igreja aponta para que "o órgão e outros
instrumentos musicais estejam no seu próprio lugar, ou seja, onde possam
ajudar os cantores e o povo e onde, quando ouvidos a solo, possam ser
escutados por todos" (IGMR, 275). Essa importância vem-lhe tanto do
espaço e função dentro da liturgia como pela sua dimensão e colocação no
próprio contexto, pelo que o seu lugar deve merecer a atenção particular
dos próprios arquitectos. O toque a solo deve, através da interpretação
de um repertório sério e adequado, conduzir o ouvinte a uma sensação de
força misteriosa que faça elevar as nossas mentes a uma participação de
escuta, mas certamente activa, tanto dentro como fora das celebrações
litúrgicas. Poderíamos mesmo dizer que a função do órgão no espaço
sagrado transcende as dimensões da liturgia para se tornar um veículo
que aponta para a solenidade e a devoção, o recolhimento e a elevação
espiritual e artística, ou seja, para o estabelecimento de um diálogo
entre a oração, a fé e a cultura. Entrar numa igreja em silêncio ou
entrar numa igreja onde soa a voz de um órgão é algo de diferente, tal
como a própria disposição do instrumento no espaço, pelas suas dimensões
e características de construção, tende a elevar o olhar como o
pensamento para as alturas. Essa é uma das dimensões que nos grandes
órgãos de tubos permanecem ainda insubstituíveis. Finalmente, o carácter
sacro do órgão como instrumento preferencialmente litúrgico deve
implicar um uso moderado e limitado à mesma liturgia no que respeita a
repertório ou mesmo no que respeita a estilo de execução. Só assim
evitaremos situações de profanidade que não só podem trair a seriedade
do espaço sagrado como também a gravidade e seriedade de um instrumento
que a Igreja cristã assumiu e consagrou como seu.
É neste sentido que, em jeito de sugestão, apontaríamos
agora algumas ideias sobre a intervenção do órgão na liturgia, nas
condições em que ela se desenvolve nos dias de hoje, tendo em conta que
pouco ou nada vem sendo escrito sobre o assunto de uma forma
sistemática. Acontece
que o repertório de música de órgão relacionado com a liturgia actual
apresenta como referência a utilização de melodias gregorianas, com
relevo para autores como Hermann Schroeder na Alemanha ou Maurice
Duruflé na França, ou a utilização de melodias de Corais como acontece
particularmente com os autores alemães Johannes Nepomuk. David ou Joseph
Ahrens. Ora admitir que a música litúrgica para órgão se define apenas
em função de uma proximidade ao Canto Gregoriano ou aos temas de Coral
parece-nos ser francamente redutor. Por outro lado, se “a dimensão
litúrgica da música organística a solo se encontra e se exprime na arte
de parafrasear melodias sobre textos litúrgicos conhecidos da assembleia
dos fiéis”, hoje em dia, as melodias gregorianas não são assim tão
conhecidas dos fiéis e, muito menos, o são as melodias de Coral no que
respeita à maioria das nossas assembleias em Portugal, salvas as raras
excepções de algumas melodias que se popularizaram entre nós como o
salmo calvinista “Povo teu somos” ou os Corais “Misteriosa madrugada”,
“Senhor meu bom Jesus” e pouco mais… Para além da utilização de melodias
gregorianas, seria de apontar, por exemplo, o estilo modal e a técnica
preferencialmente contrapontística como recursos que permanecem
fortemente ligadas ao ambiente litúrgico e sacro, mesmo quando
utilizados em obras de conteúdo profano como acontece na ópera, na
sinfonia ou mesmo no quarteto de cordas
[1].
A isso se deverá acrescentar “a gravidade do estilo que caracteriza a
música e a sonoridade do órgão, aliada a um sentido de grandeza e
solenidade” a utilizar conforme as circunstâncias e o sentido particular
de cada celebração. Em concreto, apresentaríamos agora
algumas ideias para a caracterização da música litúrgica para órgão.
5. 1 – As possibilidades técnicas do instrumento:
Como dizíamos
anteriormente, a primeira questão a ter em conta são as características
técnicas e as possibilidades do instrumento; se queremos um instrumento
apenas de acompanhamento de um coro, bastar-nos-ia um simples órgão
positivo, mas se pretendemos acompanhar uma assembleia considerável e
queremos, por assim dizer, “puxar por ela”, dar-lhe a dimensão de um
canto de aclamação como uma Aleluia, criar o clima para um canto de
entrada, etc., não poderemos limitar-nos às possibilidades de um pequeno
instrumento; ou seja, o carácter de um canto pode e deve ser definido
pelo próprio órgão e por isso é necessário que este disponha de algumas
possibilidades. Mesmo as simples respostas da assembleia litúrgica
exigem um tratamento diferente: por exemplo, o “Ámen” que conclui a
oração colecta da missa não é o mesmo “Ámen” que termina a doxologia
final da Oração Eucarística. Para tocar a solo exigem-se algumas
possibilidades, sobretudo de diálogo de timbres, o que se pode conseguir
com a registação diferente em teclados diferentes; um registo de palheta
pode ajudar bastante, a possibilidade de contar com uma “sesquiáltera”
ou um “cornetto” ajuda também, nomeadamente quando se parafraseiam
melodias litúrgicas. Não poderemos conseguir grande coisa apenas com um
teclado e limitados aos registos fundamentais por muitas que sejam as
possibilidades dos mesmos. E muito mais que se poderia dizer…
5.2 – A performance do organista litúrgico
É evidente que a eficácia
da acção do organista litúrgico não depende apenas de conhecer as
melodias gregorianas ou mesmo de saber improvisar sobre as melodias dos
cantos propostos para o coro e assembleia. Como já acenámos acima, o
simples acompanhamento da assembleia ou do coro implica registações
diferentes; mesmo a execução de um Salmo Responsorial pode exigir algo
de muito empenhativo neste campo, em função de vários factores: a
amplitude do espaço litúrgico desde uma simples capela ao espaço de uma
catedral; o tempo litúrgico, nomeadamente a diferença entre Advento e
Natal ou entre a Quaresma e Páscoa; o próprio momento celebrativo, desde
a gravidade e sobriedade de um acto penitencial ao carácter jubiloso de
um Aleluia ou do Sanctus; os participantes na celebração e a sua relação
com o espaço: a mesma igreja cheia exige por parte do organista um
tratamento diferente do da igreja quase vazia. No que diz respeito à
execução e selecção do repertório muito se poderia dizer, mas este
deverá ser apresentado em função do tempo de que se dispõe, em função do
momento da celebração: não se vai colocar um coral de grandes proporções
num ofertório que, por natureza, é breve nem se vai executar, num
momento de meditação, uma obra de carácter solene, etc. Um Prelúdio para
Órgão pode ter lugar como preparação de uma celebração litúrgica, antes
do canto de entrada enquanto que uma Fuga, nomeadamente se for em
movimento vivo, se enquadrará muito bem num final, substituindo mesmo o
cântico; ou seja, a celebração vem a ser integrada entre o Prelúdio e a
Fuga. Por seu lado, a improvisação deverá obedecer às mesmas regras: uma
coisa é um “prelúdio” que propõe e anuncia o carácter de um canto, por
exemplo de entrada ou de comunhão ou que acompanha o cantor do Salmo
enquanto se dirige ao ambão; outra coisa é um “interlúdio”,
possibilidade a ter em conta nos versículos do Salmo Responsorial ou, de
uma forma particular durante os cânticos de comunhão que pode, além do
mais, servir para um certo descanso dos cantores, sem distrair do mesmo
cântico ou do que se está a passar; não deve, por isso mesmo, afastar-se
do carácter do mesmo canto que acompanha; outra coisa é um “postlúdio”:
um postlúdio do canto de entrada, enquanto se faz uma incensação, por
exemplo, e com o qual se prepara os fiéis para o início da celebração, é
diferente do de um canto de comunhão que acompanha já o silêncio
interior dos comungantes e, mais ainda, é diferente do postlúdio de um
canto final que constitui a conclusão da celebração que, se tiver sido
especialmente festiva, deverá mesmo ser mais exuberante e tocatístico.
5.3 – Integração do Repertório organístico na Liturgia:
Já anteriormente nos
inserimos nesta questão. Há, de facto, muito do repertório organístico
que poderá ser enquadrado em certos momentos da liturgia, alguns dos
quais lhe deram mesmo origem: versos, elevações, tocatas
frescobaldianas, etc. poderão preencher capazmente alguns momentos como
ofertório ou pós-comunhão; da mesma forma que se poderá incluir, num
ofertório, um motete solene, também uma obra de carácter
preferencialmente contrapontístico e solene, como certas obras
românticas, poderá preencher esse momento, nomeadamente quando este se
alonga, por exemplo, com incensação. Salvo estas excepções, é de
proferir a improvisação sobre um canto verdadeiramente significativo da
celebração ou do tempo litúrgico em questão; o repertório deixar-se-á
para o “antes” e o “depois” da celebração. Está fora de questão, como se
sabe, a execução de órgão a solo nos tempos de Advento e Quaresma e
durante as orações do celebrante. Historicamente, não sabemos muito
sobre o efectivo enquadramento litúrgico do repertório ibérico para
órgão, mas hoje poderíamos acertar alguns dos Tentos de meio registo
em momentos mais tranquilos, alguns dos Tentos mais longos
como prelúdios da celebração e não destoaria de certos tempos litúrgicos
a execução de uma Batalha como conclusão da celebração,
nomeadamente em tempo de Natal ou Páscoa. Mais fácil seria introduzir
pequenas peças sobre melodias gregorianas como Versos,
nomeadamente aqueles que são elaborados sobre hinos ou outras obras
construídas sobre as antífonas marianas: “Ave maris Stella”, “Salve
Regina”, “Ave Maria”, etc.
5. 4. A dimensão para-litúrgica do concerto espiritual
“Outro facto importante
é constituído pela iniciativa dos concertos espirituais assim designados
porque a música executada pode ser considerada como música religiosa em
virtude do tema tratado, do texto que as melodias revestem, do clima no
qual as execuções são realizadas. Em certos casos, estes concertos podem
incluir leituras, orações ou momentos de silêncio. Em razão da forma que
os caracteriza, tais concertos podem ser mesmo designados como “pia
exercitia”.
É assim que reza
o documento da Sagrada Congregação para o Culto Divino sobre “Concertos
nas Igrejas” (n. 2). O “concerto espiritual”, que pode ser elevado à
dimensão de para-liturgia, é efectivamente uma das possibilidades de
apresentação de muito do repertório organístico de todos os tempos; uma
oportunidade, aliás, de lhe dar um enquadramento parecido àquele para o
qual foi criado. Pessoalmente, tenho feito, por diversas vezes, essa
experiência e, procuro dar mesmo esse carácter aos concertos que faço,
como se pode ver pelos respectivos programas, nomeadamente em tempos
litúrgicos fortes como Natal, Quaresma e Páscoa, através da escolha de
um repertório não só alusivo, mas também apoiado em textos que melhor o
façam compreender; poderemos contar com a ajuda preciosa dos Corais e
respectivo texto, contamos com a existência de textos bíblicos
referentes aos memos temas, um pouco ao jeito de Olivier Messiaen, com
os textos de outros cantos litúrgicos ou até de orações. Um contributo
fundamental e acessível para esse efeito pode ser dado pela orientação
litúrgico-temporal do Orgelbüchlein de J. S. Bach, complementado
pelos comentários a todos os Corais para Órgão do mesmo autor, feitos
por Jacques Chailley em Les Chorals pour Orgue de J.S. Bach ou
por muitas outras obras sobre música de órgão. A este repertório
poder-se-á acrescentar outro do género das Sonatas Bíblicas de
Johann Kuhnau ou mesmo a perspectiva moralizante das Batalhas,
para não falarmos já na dimensão teológico-trinitária do Prelúdio e
Tripla Fuga de Bach…Esse mesmo repertório poderá ser enquadrado por
outro, não especificamente de temática religiosa ou litúrgica, mas que
lhe pode servir de suporte: Prelúdios, Tocatas, Fantasias e Fugas, etc.
Os recursos do repertório
organístico de temática religiosa são imensos, pelo que se exige uma
grande dose de bom gosto na respectiva selecção; é fundamental contar-se
com alguma sensibilidade e conhecimentos de ordem litúrgica e mesmo
teológica: com efeito, não estou a ver um concerto dedicado à Paixão de
Cristo a começar com uma Tocata de Bach, mas o mesmo concerto já poderia
começar com alguns dos Prelúdios de Bach, Buxtehude ou outro… Da mesma
forma não entenderia que um organista apresentasse, num concerto em
tempo de Natal, as Variações “Weinen Klagen” de Liszt, ou algum
dos Corais de Bach relacionados com a Paixão Jesus Cristo, como não
entenderia a apresentação de La Nativité du Seigneur de Messiaen
ou uma Pastorale num concerto durante a Quaresma. Este é um dos
aspectos em que a dimensão pedagógica dos concertos de órgão,
particularmente nas nossas igrejas, muito poderá ser valorizada, para o
que deverão ser formados não só os organistas como os próprios
responsáveis pela programação dos concertos. Para um melhor
aproveitamento nesse sentido, muito poderão ajudar as notas de
comentário a colocar no programa de mão, para além dos textos que
informam as peças de dimensão mais litúrgica, textos esses que, em
muitos casos, poderão, com considerável proveito, ser lidos durante o
concerto. Para além do mais, isso dará tempo para o executante registar
a próxima peça ou mesmo para respirar um pouco…
Com uma atenção particular
a estes pormenores, poder-se-á valorizar infinitamente o simples
concerto de órgão e respeitar aquele carácter de gravidade e respeito
que a própria Igreja pretende ver guardado nos espaços sagrados, tal
como vem referido no documento já citado. Estas ideias poderão servir
ainda como orientação na escolha do repertório a preparar por parte dos
organistas, pois, para além da fruição artística e do desenvolvimento
técnico que são sempre importantes para um instrumentista, no momento de
escolher e preparar novo repertório, o mais importante é preparar
material que possa, um dia, ter utilidade para outros, seja no contexto
de uma celebração litúrgica, seja num concerto realizado no espaço
sagrado.
[2]
[1]
No campo da ópera poderíamos encontrar vários exemplos, mas
ocorre-me agora O Diálogo das Carmelitas de F. Poulenc; no
campo da Sinfonia a Sinfonia Litúrgica de Arthur Honnegger e
também uma das Sinfonias de Luís de Freitas Branco; no campo do
Quarteto de Cordas, a modalidade e estilo litúrgico é já empregue
por Beethoven no Quarteto op. 132, na “Canção oferecida à
divindade, emmodo lídio”.
[2]
Já depois de termos escrito estas linhas, tivemos acesso a um
notável artigo de Franco Caporali, organista da Catedral de Cremona,
intitulado “Organo e Liturgia”. O mais curioso é que, de uma outra
forma, acaba por apontar as mesmas ideias que apresentamos aqui na
parte final ao tratar especificamete do órgão na liturgia hoje.
Pode-se consultar o mesmo artigo bem como outros subsídios em
www.organisti.it .
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